terça-feira, 10 de agosto de 2010

REVISTA FODA-SE

Uma revista com esse nome já seria o suficiente para chamar a atenção e a curiosidade do leitor. Pois bem, além do nome excêntrico, tem algumas coisas muito interessantes que vale à pena um click, como o conto que transcrevo abaixo, que me deliciei ao ler:

MARISTELA E O BALDE


Cabelos louros e cacheados, corpo descompensado e torneado, Maristela fora apelidada de “Empadinha” pelos meninos da rua antes mesmo de completar a maioridade. Era de fato uma obra inclemente da natureza, daquelas em que a ausência de beleza não é indenizada com inteligência ou simpatia. Pelo contrário: Maristela exibia sua animosidade com a maior impudência e tinha como passatempo favorito submeter os gatinhos da vizinhança a crueldades impensáveis. Portanto, caro leitor, convém eliminar agora mesmo qualquer indício de compaixão que porventura esteja brotando de sua alma caridosa. O que aconteceu no quintal daquela casa suburbana pode até ser chocante, mas não é digno de pena.

A única paixão de Maristela chamava-se Jonathan, personagem de uma radionovela que era transmitida de segunda à sexta-feira, às nove da noite, numa estação de rádio AM. Naquele derradeiro episódio, Jonathan ameaçara abreviar a própria vida após uma dolorosa descoberta de traição. Ao tomar conhecimento da tragédia iminente, a Empadinha adentrou num grave estado de alteração: agarrou o rádio de pilha com a mão direita e arremessou o aparelho contra a parede do quintal com toda força. Não teve tempo de descobrir que a ameaça de suicídio de Jonathan tratava-se na verdade de um blefe, e que o destino do personagem seria a reconciliação com a mulher amada antes do final da novela. O blefe, aliás, era patente para qualquer ouvinte atento, mas não para Maristela. Na cabeça dela, Jonathan era completamente incapaz de mentir. Blefar, ela nem sabia o que era.

Para aliviar sua indignação, Maristela resolveu torturar um gato vadio. Capturou um malhado que dormia no muro da padaria e trouxe-o para o quintal de casa. Ali, cortou com um alicate de unha todos os pelos do bigode do felino e ficou a observar a agonia cambaleante do animal. Ela descobrira que, sem os pelos da frente, os gatos ficam totalmente desorientados, como se perdessem o seu radar. E com o malhado não foi diferente. Mas a verdade é que a maldade aprontada pela moça não funcionou como remédio para atenuar a dor que o suicídio não-consumado de Jonathan lhe causava. Decidiu então que era ela mesma quem deveria se matar.

A ideia não era nova: por diversas vezes, a Empadinha havia planejado a própria morte. Numa delas, pensou em se enforcar com uma corda, mas lembrou que seu pescoço praticamente inexistia. A cabeça era quase que diretamente colada ao tronco, o que poderia dificultar a colocação da corda em torno do pescoço, imaginava. Em outra ocasião, tomara uma overdose de laxantes acreditando ingerir um remédio para insônia que, segundo a Revista da TV, provocara a morte de um ator famoso. Aquilo lhe rendeu semanas de diarreia e um constrangimento inolvidável.
Agora, aqui estava Maristela, andando de um lado para o outro no chão do quintal e pensando numa maneira de suicidar-se sem que houvesse sangue derramado. Tinha pavor de sangue. Foi então que avistou o balde de metal jogado num canto do quintal. Aquele balde enferrujado estava largado ali havia muito tempo. Pertencia ao seu irmão e era utilizado nas tardes de domingo, quando ele limpava o automóvel que o havia levado para bem longe. Por conta das sujeiras do carro, o balde tinha uma crosta negra entranhada no fundo e Maristela tratou de lavá-lo com Bombril e detergente porque, apesar de estar premeditando um suicídio, temia contrair doenças no momento em que enchesse o balde sujo com água e enfiasse a cabeça ali dentro.
Balde limpo, a tentativa de suicídio quase foi frustrada pela falta d’água. Maristela girava as torneiras da casa e as poucas gotas que caíam serviam apenas para umedecer as palmas gordas de sua mão. Enquanto testava a última torneira, lembrou-se do estoque de suco concentrado de groselha que sua tia havia deixado guardado na garagem para a produção dos sacolés do próximo verão. Não teve dúvida: morreria afogada na groselha.

Quem contemplasse a cena do alto, talvez não compreendesse bem o que sucedia no quintal de Maristela. No chão, o balde cheio de líquido avermelhado. De cócoras, em frente ao balde, aquela moça loura e parruda que olhava para o céu com os braços estendidos e um sorriso torto no canto da boca. Ela repetia, bem baixinho: “Jonathan! Jonathan!”.
Quando finalmente enfiou a cabeça no balde, a cena tornou-se ainda mais esquisita. Isto porque o vento levantava a saia de Maristela – que agora tinha as mãos e os joelhos apoiados no chão – e deixava seu ânus respirando livremente o ar da madrugada (Maristela raramente usava calcinha). O espetáculo estapafúrdio, entretanto, durou pouco: a suicida não conseguia prender a respiração por mais de dez segundos e o suco de groselha penetrava por suas narinas durante a tentativa de afogamento.
Ofegante e irritada, a moça arrancou um pregador de roupas do varal e aplicou o objeto nas narinas para evitar a inalação do suco. Acontece que o pregador tapou parcialmente a sua visão e ela não notou a presença do gato malhado, que circulava desorientado à sua frente. Por isso, tropeçou no balde e derramou o concentrado de suco pelo chão. O escorregão foi inevitável, e a queda, violenta. Maristela, desacordada, passou alguns minutos estirada no chão do quintal com o crânio fissurado enquanto o gato lambia a groselha que se esparramara ao redor de seu corpo.
Mesmo machucada e enfraquecida, ela ainda conseguiu reunir forças para encher novamente o balde e mergulhar nele a sua cabeça. Desta vez, o afogamento foi um sucesso. Antes de morrer, a Empadinha balbuciou, lá no fundo do balde, entre bolhas de groselha: “Jonathan! Jonathan!”.

Zé McGill

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