terça-feira, 29 de outubro de 2013

LUCTUS


Meu pai morreu a noite passada. Descansou. Nos últimos anos sofreu um pouco, com diversas doenças que a velhice lhe resguardou, por uma vida não muito regrada, depois de 6 casamentos e 10 filhos com 3 mulheres desses casamentos. Depois de muitos anos sem contato, alguma mágoa da minha parte pelo sumiço e pela escolha na vida que fez, entrou em contato comigo e passamos a conversar frequentemente. Foi uma experiência legal, mesmo que não nutrisse o sentimento que um filho devesse ter por um pai, era legal ouvir suas histórias e um pouco da minha própria, dos meus primórdios.

Tinha o desejo de que eu fosse visitá-lo na casa dele, em Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, na fronteira extrema do país, 1283 km de Londrina, pelo menor trajeto. Não deu tempo. 

Laudelino Flamarion Silveira nasceu em 1942, na cidade de Canoas, região metropolitana de Porto Alegre, capital do Rio Grande. Filho de Laudelino Ávila Silveira um comunista que conviveu com Luis Carlos Prestes e Dona Julieta Cardoso. 

Era um gaúcho ranheta, daqueles machistas e mulherengos, que em muitos momentos da vida andou pilchado e no final da resolveu se recolher para a pequena Livramento, com a última mulher da vida, dona Ilda, que cuidou dele nesses últimos anos de vida sofrida.

Meu gremismo vem dele. Minha mãe é colorada, filha de um ex-jogador do Inter, talvez da década de 1940. Portanto, toda a família da mãe é colorada, inclusive minha avó, que fez do Rogério, meu irmão mais velho por parte de mãe e pai, em sua infância, um coloradinho. Como fomos criados pela mãe, deveríamos ter sido colorados. Mas meu pai, com quem pouco convivi na minha vida, que aparecia de vez em quando lá em casa, na Clemente Pinto, no bairro de Teresópolis, onde nasci, era gremista e nos deixou essa herança, que hoje tem no Victor Hugo, no Gui, no Renatinho, no João Victor e na pequena Luiza a sua continuidade no amor ao Grêmio e às suas três cores imortais. Isso foi o de mais valioso que o Flamarion nos deixou e com orgulho estamos dando continuidade, não só no seu nome, que ele tanto prezava e que carregamos, mas também no orgulho de ser gremista.  

Outra herança sentimental que ele deixa aos 10 filhos, dos quais poucos ele criou, além do gremismo que seguimos (inclusive a Fernanda, única filha), foi o gauchismo. Esse sentimento de amor ao Rio Grande, que no meu caso, mesmo distante tantos anos, sem conviver com a cultura diretamente, apenas por livros, música e leituras diversas, depois com o advento das tecnologias e da internet e das poucas visitas em algumas férias, se manteve. O amor ao tradicionalismo, mesmo sem ter convivido (nem com o pai, nem com o gauchismo) vem dele, vem dos nossos ancestrais. E não tem explicação tamanho orgulho, apenas existe e é incompreensível para quem não tem esse sentimento. Parece soberba, mas não é. Para quem não sente, não tem como entender. 

Tive a sorte de churrasquear com ele em 2012, quando o encontrei depois de quase 30 anos, já debilitado pelos problemas da velhice (embora pudesse ter saúde melhor, não fossem os excessos e a vida que escolheu), mas ainda consciente e bem humorado, apesar de ser um cara conhecido pelo seu péssimo humor e ranzinzice. Foram dois dias agradáveis, que serviram para eu (re)conhecê-lo e que rendeu a foto que ilustra esse post. E foi muito bom para eu me sentir em paz e poder elaborar esse luto.

Flamarion se foi. Nos deixou. Reclamava dos problemas de saúde, da quantidade de remédios que tinha que tomar, da visão já turva e de não ter mais com quem conversar, uma vez que seu irmão, com quem falava diariamente, jogando conversa fora, provavelmente tomando chimarrão, um em cada lado do telefone (meu tio morava em Porto Belo, no litoral da bela Santa Catarina), morreu ano passado, meses antes de eu visitá-lo nas férias. A solidão e a dependência para tudo o deixavam extremamente triste. Agora devem estar batendo aquele papo que não puderam ter nos últimos meses, voltando aos seus corpos saudáveis da juventude e que arrasavam com as gurias de Porto Alegre.

Peço a Deus que guarde um pedacinho do céu para ele. Se não foi dos melhores pais (longe disso) pagou em vida os seus pecados; se teve seus pecados e suas falhas, foi antes de tudo um ser humano, com seus defeitos e suas qualidades. Ninguém pode julgá-lo, apenas Deus misericordioso. E que pode perdoá-lo.

Espero que na próxima vida tenhamos uma convivência mais estreita. E quando eu for dessa vida, tomara encontrá-lo no céu e jogar bola com ele (ele não pode ver pessoalmente minhas habilidades futebolísticas), coisa que ele fez muito na sua juventude, assim como eu, com o manto tricolor, calção e meião do imortal, totalmente uniformizado de Grêmio, como infelizmente eu não tive o prazer de vê-lo pelos gramados das peladas do Rio Grande, mas que vi em fotos. 

Flamarion se foi. Um dia depois do Lou Reed, contemporâneos, quase com a mesma idade. Levará um pouco das canções nativistas para o imortal Lou Reed. E me deixa duplamente enlutado e triste. Lou Reed é a trilha sonora desse post. Boa música, excelentes lembranças. No final é tudo o que fica, as boas lembranças da efervescente e efêmera vida.

Descanse em paz, Flamarion! Que Deus o tenha! E a mulherada no céu que se cuide.