domingo, 23 de fevereiro de 2014

QUARENTENÁRIO - PAUSA PARA ESCLARECIMENTO E OTRAS COSITAS MAIS


Engraçado o destino. O Gui diria que não é engraçado, porque não nos faz dar risada, “o que é engraçado, qual a graça?” – diria. Mas o destino é engraçado; engraçado no sentido de que as coisas acontecem sem querer, ou quase sem querer,

“... tenho andado distraído, impaciente e indeciso...”

sem estarem estabelecidas. Ao menos aparentemente. Não adianta querer planejar algo se o destino não se interessar pelo plano. E o acaso junta as coisas que não esperamos e quando menos esperamos.

Destino e acaso unidos para dar sentido à vida, mesmo que não tenha nenhum sentido aparente ou não faça sentido para nossa razão, nosso lado racional. Quando estava no Segundo Grau, hoje Ensino Médio, tinha aula de Física com a Mércia, uma professora magra, alta, com uma voz levemente esganiçada (dá para ser esganiçada em tom leve? Sempre me perguntei isso quando tentava descrever as características de sua voz.) pouco atraente, mas bonita, dizia que podia não existir um Deus, mas que alguma energia, alguma matéria com uma fonte de energia existia, uma energia superior que influenciava no destino, em nossas vidas. E que essa energia ela chamava de Deus. Os poucos ateus da sala deveriam pestanejar; eu guardei essas palavras, essa idéia para o resto dos meus dias, ao menos até aqui.

O fato é que comecei a ler a biografia do Nasi, que comprei ontem. A Ira de Nasi. A vida do Nasi, que conheci pessoalmente meses atrás, no embarque de Congonhas para Londrina, voltando de Santos, quando trocamos olhares e como dois velhos conhecidos que não se encontram há tempos, apertamos as mãos e trocamos saudações. Um cara simples, extremamente simpático e carismático. Isso foi o que senti. Fiquei em êxtase, queria abraçá-lo, conversar, tirar foto, dizer o quanto ele e sua banda foram importantes na minha vida e tal, enfim, tietar idiotamente; coração taquicárdio, adrenalina, suor e cerotonina pelo corpo. Estupefato e paralisado pela emoção grande, acabei não fazendo nada, apenas mandando uma mensagem para meus contatos sobre o ocorrido e o seguindo com os olhos, torcendo para que viesse para Londrina. Mensagem esta enviada, cheio de orgulho e tentando fazer meus amigos morrerem de inveja do ocorrido.

Mas, dizia, a vida de Nasi se confunde com a do Ira! e com a de seus companheiros de banda, como Edgard Scandurra. Ler a biografia de Marcos Valadão, o Nasi, que recebeu esse apelido na escola, segundo grau, por ser bom de briga e entrar em confusões, inicialmente apelidado de Nazista e logo depois sendo abreviado, tendo mudado a grafia, trocado o “z” pelo “s” quando começou a ter bandas, é ler a história do Ira!, é conhecer um pouco da vida do Scandurra, do André Jung e do Gaspa.

Após esse longo preâmbulo, ao assunto. Ontem, animado e até mesmo inspirado, escrevi mais uma parte da história da minha vida, o que tenho chamado de Quarentenário, uma vez que comecei a escrever após completar os meus 40 anos, as 4 décadas; e contei que havia uma rixa entre os punks da cidade e os do subúrbio, da periferia. Lendo o início do livro já citado aqui, encontro uma explicação plausível para essa divisão: diferente dos ingleses e do resto do mundo, que se uniam contra o stablishment, o estabelecido, o status quo, o sistema, os punks da cidade de São Paulo e da periferia (as cidades que formam a região conhecida como Grande São Paulo, cidades periféricas à que dá nome a região metropolitana) não se misturavam e brigavam entre si. Aí um esclarecimento que completa o post anterior, quando apanhamos dos carecas do subúrbio por sermos punks da cidade, ou da city e não da periferia ou do subúrbio. Justifico assim essa pausa para esclarecimento.

Ler sempre foi sinônimo de cultura. Fonte de conhecimento e esclarecimento. É isso que faz o hábito da leitura um prazer quase que orgástico! Lendo e aprendendo! Vivendo e aprendendo. Quando fiz 15 anos queria colocar a canção XV Anos (Vivendo e Não Aprendendo) na vitrola exatamente às 15 horas, que foi a hora do meu nascimento. Estava escutando o Vivendo e Não Aprendendo do Ira! e programei tudo para o momento. Meu irmão Beto não deixou, pois estava escutando outra música desse mesmo disco. Frustração momentânea. Escutei uma das melhores canções do Ira! depois das 15 horas, minutos ou horas mais tarde. Hoje não faz diferença, mas o ritual da passagem para os 15 anos ficou inacabado.


E sempre que me sinto assim, volto a ter 15 anos.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

QUARENTENÁRIO - O PRIMEIRO DIA DO COMEÇO DE NOSSAS VIDAS I


Essa parte da minha vida se chama “o primeiro ano do começo de nossas vidas” parodiando o filme, que tem o mesmo nome, clássico dos anos 1980 (1985, sendo mais exato). Não pela dramaticidade, mas pela importância, pelo ocorrido que mudou completamente minha vida. Possivelmente em um capítulo não será possível escrever tudo; talvez 2 ou 3, quem sabe até 4.

Começo escrevendo inspirado ou influenciado também por outro filme, que é “Em Busca da Felicidade”, tendo assistido umas 60 vezes, sem exagero, por volta de 2008. Isso porque, ao montar e ministrar o curso de Economia Solidária, o utilizei nas turmas do curso. Hoje percebo a incoerência de passar um filme que exalta o heroísmo capitalista do protagonista em um curso que busca uma alternativa para esse sistema. Os alunos, provavelmente inconscientemente, devem ter percebido a burrice do professor. Qual será a mensagem que passei? Deve ter comprometido completamente o curso, que preparei com tanto afinco, baseado na obra de Paul Singer, mas com a merda de um filme endeusando o capitalismo selvagem.

Nesta fase da minha vida remonto ao ano de 1988. Foi nesse ano que conheci a Ana Teresa, neta de uma vizinha do Branco, o Robson Lima, baixista da Mayday, como já apresentei aqui alguns posts atrás (na verdade muitos posts). Em seguida começamos a namorar. Ela morava em São Paulo e descia a serra algumas vezes por ano e então tínhamos aquele namoro quase que virtual, por telefone e vez por outra nos encontrávamos. Nessa época, auge nosso no movimento punk, íamos para São Paulo assistir shows, participar de passeatas, enfim, fazer qualquer coisa que a metrópole poderia nos proporcionar e que a ‘provinciana’ Santos dos anos 1980 não nos oferecia.

Éramos todos menores de idade, algumas vezes, para viajar, pegávamos no juizado de menores autorização com nossos pais, mas a maioria das vezes íamos na coragem e contando com a sorte, para não sermos pegos pela ‘migração’, que era o próprio juizado de menores, que prendiam os desavisados e teimosos adolescentes em uma sala na rodoviária do Jabaquara, sul de São Paulo, até os pais irem buscar. Imaginem o transtorno. E isso aconteceu com uns amigos (Quinda, Raimundo, Marcus Wander, Cleber), mas comigo nunca.

Numa dessas viagens para São Paulo, se não me engano em um 7 de setembro... pensando bem, não foi nessa data, pois as ruas estariam tomadas de milicos, mas foi em um feriado qualquer dessa época do ano, fomos a São Paulo participar de uma passeata pela paz. E saímos da praça da República em direção... bah, agora não me recordo o trajeto. Acho que até a Praça da Bandeira, sei lá.

A passeata tinha como motivo um alerta pela paz. Movido pelos gritos de sempre, seguíamos pelas ruas da cidade, importunando o trânsito e rodeado de policiais prontos a descer a porrada. No primeiro deslize e eles partiam para cima. Ainda mais em uma época recém sápida da ditadura.

O movimento era apartidário e virava uma miscelânea quando direcionava seus impropérios à exploração capitalista (“você aí parado, também é explorado”), depois voltava a carga a indignação contra as guerras, tendo como pano de fundo sempre Hiroxima e Nagasaki e o dia 6 de agosto de 1945 (“pela vida pela paz, Hiroshima nunca mais”), quando os EUA jogaram a bomba nuclear em represália ao ataque japonês a Pearl Harbor, base naval norte americana, no final do que a História designou como sendo a Segunda Grande Guerra Mundial. Essa data foi, é e sempre será importante na minha vida, o que veremos mais adiante.

Enfim, estávamos em vários amigos de Santos e no meio da passeata nos perdemos. Sobramos eu, Zé Renato e Ronaldo. Quando chegamos ao nosso destino, não encontramos os caras de Santos, para voltarmos juntos. Mesmo tendo procurado na multidão, nada. Tivemos a ‘brilhante’ idéia de retornar a Praça da República, de onde partiu a passeata.

Importante um parênteses aqui. Éramos completamente idiotas e nosso maior desejo era sermos presos e ter ficha na polícia, o que, infelizmente para a época, mas felizmente para os dias de hoje, não aconteceu, apesar das inúmeras vezes que a polícia nos parou para “dar geral”, muitas dessas vezes com uma violência desproporcional e desnecessária. Sim, porque éramos um bando de punks rasgados e sujos, mas raquíticos, que não faziam mal a uma mosca, mais por nossa ideologia, menos por nossa fraqueza física.

Ao voltarmos pelo mesmo trajeto, com a esperança de encontrar o pessoal de Santos, chegamos finalmente ao nosso destino, que era o início da passeata. Como o personagem de Guy Pearce, Leonard Selby,em Amnésia, fizemos o caminho de ida ao contrário, saindo do final e chegando no começo. Sem sucesso, paramos e sentamos em um dos bancos da praça, sempre com a esperança de que os demais tivessem o mesmo raciocínio nosso.

Aguardando, ficamos sentados. Conversa tola possivelmente, sobre como mudar o mundo, a alienação do povo, qual banda mais legal do momento, entre outros assuntos que devem ter dominado nosso papo naquele ensolarado final de tarde em São Paulo. 

A forma como estávamos dispostos era a seguinte: caro leitor, imagine esses bancos de praça, cinzento, de cimento, arredondado, pouco confortável, embora construído de forma anatômica para dar algum conforto; eu estava de costas, virado de frente para os meus amigos, de pé, com a perna direita no banco; no canto esquerdo para quem está de frente para o banco; Zé Renato sentado no meio, mas no encosto com os pés no acento do banco; Ronaldo sentado no banco, da maneira mais convencional. Mochila nas costas dos 3, cada um com a sua e suas parafernálias e bugigangas dentro.

Naquela época existia uma rixa grande entre as tribos diferentes, uma intolerância com o diferente. Acredito que hoje isso esteja amenizado, ao menos em relação ao tipo de som e ideologia de cada um; também pelas leis e pelo politicamente correto, a intolerância fica mais no campo da hipocrisia e se dissipa. Mas nos anos de 1980 não era possível escutar Heavy Metal e ser Punk; era uma heresia ser Careca e ter amigos Punks ou que escutassem outro tipo de som que não o Punk/ Ska/ Oi, estilo de música identificada como sendo dos Carecas do Subúrbio. Estes eram caras bombados, fortes, que pegavam os raquíticos punks para descarregar suas raivas e frustrações com a sociedade capitalista.

Sempre nutri um desejo não confesso de encontrar os carecas. Nunca acreditei que eles seriam violentos conosco. Felizmente os encontramos pela frente uma única vez. E eles foram violentos! E foi nesta tarde, final de passeata, nós de volta à Praça da República, em São Paulo, esperando nossos amigos para voltarmos todos para Santos, que tivemos esse triste, fatídico, violento e sangrento encontro. Pelo que minha percepção pôde sentir, 3 carecas chegaram nas minhas costas. Rolou aquele stress, aumento de taquicardia, tensão... o medo não nos petrificou, fez ficarmos alertas, mas nos mantivemos em nossas posições, para não criar um mal estar e precipitar a violência.

Ao chegarem até onde estávamos, rolou o seguinte diálogo:

Careca: “De onde vocês são?”

Nós, em uníssono, muito provavelmente tomados pela tensão do momento, de medo: “De Santos.” Tremor na voz.

Careca: “Cidade ou subúrbio?”

Um momento de hesitação entre nós. Raciocínio rápido, pressentíamos o pior. Santos é uma ilha, tudo junto e misturado. Cidade e subúrbio se misturam em uma Babilônia caiçara. Não separa bairros nobres de bairros de periferia. Não ao menos naqueles anos de 1980. Não tinha espaço para qualquer segregação espacial/ social.

Nós, após a pausa para pensarmos: “Cidade.”

Tensão. Segundos de silêncio amedrontador. O que viria pela frente? Qual a reação de nossos algozes?

Os carecas do subúrbio tinham uma rixa muito grande com os punks da city, seja lá o que for que isso significasse, era ruim para nós sermos da ‘cidade’. Os punks do subúrbio paulistano tinham algum acordo de não agressão com os carecas do subúrbio, o que não havia com os da city. Pior para nós. Pééééééimmmm, resposta errada.

Careca: “Aqui é o seguinte, CARECA!”


E partiram para cima de nós, com seus coturnos e uma agilidade não muito grande de brutamontes. Nós, magrelos, tínhamos mais agilidade. E no auge dos nossos 15, 16 anos, éramos quase linces de tão ágeis. Eu, de pé, me safei fácil da investida; Zé Renato, em uma boa posição de defesa, conseguiu desviar do chute que acertaria sua cara em cheio; mas não tão rápido a ponto de evitar que seus óculos caíssem no chão; sobrou para o Ronaldo, que, sentado, pouco pôde fazer para desviar do chute que o acertou em cheio na boca. Corremos tão rápido quanto nossos instintos permitiram. De repente percebemos que o Ronaldo não estava conosco. Voltamos para buscá-lo e encontramos no meio do caminho, um pouco mais lento que nós. Outro problema, os óculos do Zé Renato. Queríamos voltar, mas o Zé Renato, assustado, como nós dois, comentou algo para que deixássemos para trás, o que fizemos sem pestanejar ou pensar duas vezes.

Passado o susto maior, o resultado: eu safo, Zé Renato sem os óculos, com um pequeno arranhão na face e o Ronaldo com a boca cortada, sangrando muito. Lá vamos nós, naquela torre de babel, procurar um hospital. Pergunta para um, pergunta para outro e os transeuntes nos indicaram o Hospital das Clínicas. Fomos a pé, que seria mais fácil de fugir dos carecas. Táxi nenhum nos aceitaria com o Ronaldo jorrando sangue pela boca. Ônibus perigoso demais ficar parado e a espera nos tornaria alvos fáceis. Metrô nem sei se teria para lá.

Ao chegarmos ao hospital, Ronaldo, para variar, deu outra mancada. Estava sem documento. Sem lenço e sem documento. Como era uma emergência, ele entrou logo e foi direto levar pontos na boca. Ao sermos questionados o que havia ocorrido, inventamos uma história qualquer, menos contar que havíamos nos metido em encrenca com os carecas e muito menos mencionamos que éramos de Santos.

Enquanto esperávamos o Ronaldo, eu e o Zé Renato pensávamos no que fazer para sairmos de lá sem preencher qualquer cadastro ou ficha e sem passar pelo plantão policial, o que os atendentes disseram que teríamos que fazer. E essa não era a única preocupação: havia o caminho de volta para Santos, como faríamos para chegar ao Jabaquara e pegar o ônibus, sem encontrar nenhum careca?

Ronaldo foi salvo pela Constituição de 1988, que dava o direito à saúde a todos os brasileiros, diferente de anteriormente, quando era necessário ter a carteirinha do extinto Inamps (hoje SUS) e esta só tinha quem era dependente de alguém que tinha carteira de trabalho assinada ou se o próprio trabalhasse com registro.

O Ronaldo saiu. Disfarçamos um pouco, uma ida ao banheiro aqui, outra ali e encontramos uma saída clandestina. Saímos “de fininho”, corrido, como fugitivos da cadeia. Ganhamos a rua. Chegamos ao ponto de ônibus, assustados, com medo, tensos... metrô jamais, os carecas sempre transitavam pelas estações a procura de alguém para espancar. Essa era nossa idéia, eram as informações que nos chegavam. Fomos de ônibus mesmo. Chegamos à Rodoviária sem incidentes. Mas ali tínhamos mais uma barreira.

Para ‘subir’ para São Paulo conseguimos sem percalços, ninguém questionou se éramos maiores ou menores de idade, não nos solicitaram documento, não desconfiaram de nossa idade. Mas na volta, depois de todo o susto, o receio era maior; poderiam solicitar agora documentos para conferência da idade antes de entrarmos no ônibus. Conversei com os dois e combinamos de nos separarmos, para não dar na cara e se parasse apenas um, dava para enrolar e os demais estariam embarcados. Assim, sem estarmos juntos, não levantaríamos suspeitas. Fui o primeiro a embarcar. O motorista me perguntou a idade. Sem titubear disse: “18”! Pediu meu o RG e vi que teve dificuldades para calcular minha idade; deixou-me embarcar, não sem antes emitir um comentário de que muitos menores viajavam mentindo a idade, enganando as autoridades. Eu concordando: “claro, claro, o senhor tem toda razão, esses adolescentes são complicados mesmo”. Alívio, eu havia passado. Agora faltavam os dois. Logo os vi subindo e percebi que estávamos salvos e de volta para casa.

Ao chegarmos em Santos, ligamos para o Branco, preocupados com o resto da galera. O filho da puta estava em casa, banho tomado, assistindo novela. Os demais haviam voltado para Santos tranqüilos, sem nos procurar, porque acharam que tínhamos feito o mesmo, que não seríamos tolos de voltar à Praça da República. Grandessíssimos filhos da puta! O Branco informou que, por medo dos carecas, da polícia e de qualquer repressão ou violência que pudessem sofrer, os bonitos tinham dispersado e saído da passeata antes do seu final e ido embora. Sem pensar em ninguém.

Que sufoco! Que tensão, medo, cagasso que passamos e os filhos da puta todos em casa, na maior tranqüilidade, curtindo o final de feriado. Mas de certa forma, dali por diante tivemos um quê de heróis, havíamos participado de uma ‘briga’ com carecas, sentido na pele a fúria destes, experienciado a vida em sua face mais cruel; tínhamos história para contar. Éramos o que hoje chamam de “os caras”. O respeito por nós aumentou. Por um tempo fomos tratados diferentes. Nós éramos experiência viva da violência dos carecas. Tivemos orgulho dessa situação por um bom tempo.

Dias ou semanas depois, os mesmos carecas que nos espancaram em Sampa encontraram com o Fernando, um dos punks que estava conosco na passeata na rodoviária de Santos e comentaram o episódio violento. Disseram que se tivéssemos respondido que éramos do subúrbio não teriam batido em nós. Que o lance deles era com os punks da city, não com os do subúrbio.

Ali percebemos o quanto custa uma resposta errada. Lição aprendida, embora ao longo de nossas vidas tenhamos dado respostas erradas muitas outras vezes e quebrado a cara. Depois desta, sempre de maneira figurativa.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

QUARENTENÁRIO - ÉRAMOS SEIS


Éramos seis. Nunca fomos sete. O Flamarion nunca fez parte de nossa família. Éramos seis, embora no início, bem no principio da minha vida, fomos por algum tempo (pouco tempo, confesso) sete: tinha a velha Linda, minha avó, na verdade bisavó, materna. Mas ela se foi cedo, em 1976, eu tinha 4 anos, quando ela partiu de vez. O Flamarion, meu pai, também se foi, ano passado, dia 29 de outubro. Mas como nunca fez parte da família, apenas aparecia, esporadicamente em casa, nos anos 70, geralmente aos finais de semana, algumas vezes levava os guris no Olímpico Monumental para uma das sofridas pelejas da saga gremista daquela década, menos eu e o Renato, segundo julgamento dos adultos, pequenos demais para freqüentar as arquibancadas de um estádio de futebol; dessa maneira, em nossa essência como família, éramos seis, como aquele livro da Maria José Dupré, que li quando criança, de uma coleção que fez a cabeça de crianças dos anos 1980, a Série Vagalume.
Éramos seis. Minha mãe, o Rogério, filho mais velho, o Beto (Roberto para os íntimos), o Fábio, eu e o Renato. 

As lembranças mais antigas da minha vida, ainda em Porto Alegre e quando a velha Linda ainda era viva; lembro de atravessar a casa toda para chegar ao seu quarto e procurar um espaço na cama, nos pés, pois o canto ao seu lado já tinha dono, meu irmão Rogério, era dele aquele território. Eu chegava de mansinho e todas as manhãs era sempre a mesma cena: lá estava eu dormindo apertado.

O quarto dela ficava nos fundos da casa, era necessário atravessar todo o casarão, que para eu, com meus 2, 3 anos idade, parecia enorme. Tenho viva essa lembrança. Assim  como tenho viva a lembrança, de um ano qualquer da década de 1970, não sei exatamente em que ano, tarde da noite, todos em casa assistindo ao filme O Fantasma da Ópera. Como eu, meus irmãos Renato e Fábio éramos muito pequenos, não podíamos assistir. Mas lembro da TV preto e branco, na sala escura, luz apagada, piscando e emitindo luz e sons apavorantes a cada cena nova; era assustador.

Não sei porquê cargas d’água, no final dos anos 70, mudamos para Santos. A velha Linda já havia morrido. Ela morreu em 76, lembro do dia do seu enterro. O Rogério, meu irmão mais velho, muito apegado a ela, foi o único que teve autorização para ir ao seu enterro. Também porque ele ‘já tinha’ 10 anos. Deve ter sentido bem mais a sua falta do que os demais irmãos.

Dias depois, a vi subindo a escada, em um vestido branco esvoaçante. Alucinação? Impressão? Ou apenas a memória me traindo? Seja o que for, prefiro acreditar que isso tenha ocorrido e que ela tenha vindo se despedir de mim, porque não pude me despedir no seu velório. Assim como o tio Luiz, irmão do pai, que morreu ano retrasado e no dia da sua morte, ou melhor, no dia em que eu soube da sua morte, sonhei a noite inteira com ele. Acho que ele veio se despedir.

Aos poucos um a um foi saindo de casa e procurando seu rumo. Primeiro foi o Rogério, que foi para a Marinha do Brasil, quando fez 18 anos. O famigerado programa do Serviço Militar obrigatório. Em plena ditadura, já no seu final, respirando por aparelho, mas sobrevivendo.

O Beto foi para São Paulo, fazer Engenharia Industrial na FEI, em seguida ao Rogério (fez 18 um ano depois do Rogério); além disso, trabalhava na compensação do Banco Itaú. Isso foi por volta de 1984, 1985. Época do fracassado movimento das Diretas Já, que mobilizou o Brasil inteiro pela Democracia, que foi derrotado com a ajuda da Rede Globo. Havia um slogan na boca da galera: “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. Em 1985 houve uma final inusitada entre dois times pequenos no campeonato Brasileiro: Curitiba e Bangu, vencido pelo primeiro, em pleno Maracanã, nos pênaltis; o Brasil de Tele Santana se preparava para a Copa do Mundo, no México; Tancredo Neves era eleito no colégio eleitoral o novo presidente do Brasil, tendo como seu vice um tal José Sarney; a música brasileira pulsava com o chamado Rock Nacional, ainda embrião, pronto a estourar.

O Rogério sumiu no mundo. Foi explorar alguns cantos, conhecer lugares e vez por outra, aparecia recheado de discos, umas parcas mudas de roupa e muita história para contar; o Beto, morando mais perto, aparecia com mais freqüência.

Efervescente década de 1980, eu ainda no ginásio, ou o que chamam hoje de Fundamental II, queria fazer medicina. Aos poucos fui desejando fazer carreira militar, na Marinha, como o Rogério. Poucos anos depois fui destituído da idéia, tanto da medicina (por falta de empatia com a biologia), quanto da Marinha, pela teimosia do Rogério em falar mal da mesma. Também porque não via compatibilidade entre estudar e a carreira militar, visão esta que anos mais tarde, já na Universidade, seria desnudada pela realidade, uma vez que descobri ser possível estudar e ter uma carreira militar, aliás, que esta não existiria sem aquela. Um pouco de ideologia, do que o Serviço Militar representava naquela época, final de ditadura, para todos nós. Como na canção do Ira!, Núcleo Base: eu tentei fugir, não queria me alistar, eu quero lutar, mas não com esta farda (sempre quando escutava essa canção pensava: eu quero lutar com a camisa do Grêmio).

Em 1991, eu com 18 anos e o Fábio com 20, saímos ao mesmo tempo de casa. Fui para Assis, estudar Psicologia na Unesp, campus desta cidade, o Fábio foi para a Londrina, a pequena Londres, no Norte de Paraná, cursar Comunicação, Jornalismo. Com isso, restaram o Renato e a Sirlei, minha mãe. O jogo de “resta um”, iniciado em 1985 pelo Rogério, estava se findando. Ganhávamos o mundo e muita bagagem pelos anos que viriam.
O Renato morou muitos anos ainda com a mãe. Casou em 2004 e continuou com a mãe, cortando o cordão umbilical em 2012, 11, não sei ao certo, quando então restou a Sirlei, em um vazio, silencioso apartamento de 2 quartos no morro da Nova Cintra, condomínio este que o Renato mora, em bloco diferente.

E assim está configurada a família: Rogério, em seu segundo casamento, desta feita com a Terê e o Biel, filho desta, morando em Navegantes, Santa Catarina, mesma cidade onde mora seu filho, Victor Gabriel; o Beto, morando sabe Deus onde, entre Santos e Diadema, onde vivem sua (ex?) esposa e seus dois filhos, Renatinho com 15 anos e João Vitor de 13; o Fábio e a esposa Elaine em Londrina, a algumas quadras de casa, onde moro com a Juliana, o Victor Hugo de 20 anos (prestes a deixar Londrina por Santa Catarina para estudar Engenharia – a história se repete, mas a força deixa a história mal contada...), o Gui com 15 e mais algum tempo de casa; e, finalmente, o Renato com a Luciana e a pequena Luiza, chegando aos 7 meses por esses dias, como já dito, morando em Santos, o xodó da família. Sim, a Sirlei teve 5 filhos homens e até a Luiza, 5 netos, todos homens. Só agora veio a tão sonhada guria.

Estamos prestes a nos reunir no próximo verão, em Santa Catarina, numa dessas paradisíacas praias que Deus construiu e que o homem insiste em modificar. Nós seis. Como nos primórdios. Dez anos depois, quando nos reunimos por uns poucos dias no casamento do Renato.


Espero que seja o primeiro de muitos encontros, para sentar, falar merda, bagunçar, viver aquela vida vagabunda que as férias permitem, a Sirlei, nós 5, nossas 5 esposas, os 6 netos. E preparar o terreno para em 2 anos, 2016, quando a Sirlei se tornará octogenária. Aí sim uma festa maior.