sábado, 28 de dezembro de 2013

QUARENTENÁRIO


"Se tudo passa, talvez você passe por aqui
e me faça esquecer tudo o que eu vi."

Essa foi a trilha sonora da minha primeira fase adolescente. Tinha 14 anos e no começo de 1987 arrumei meu primeiro emprego. Um vizinho, seo Jorge, mais conhecido como Nonico, que tinha uma loja de sapatos, me chamou para trabalhar com ele, pois precisava de um vendedor. E lá fui eu, no final de 1986, em dezembro, se não me engano dia 1º, começar uma nova vida. 

A canção cujos versos citei acima fazia parte do primeiro disco do Engenheiros do Hawaii. Mas isso eu não sabia. Naquele época, mais romântica do que hoje, era um mistério as bandas que surgiam pelo Brasil afora. Uma época em que não existia celular, internet, nem ao menos computador. Poucos tinham telefone fixo, um luxo reservado apenas às famílias mais abastadas. Período pré era do conhecimento. A loja de sapatos ficava ao lado de uma loja de discos, a Prodisc. E tinha alguém naquela loja que curtiu esse disco e escutava quase todos os dias. E nós escutávamos por tabela.

Graças a Deus o pessoal curtia um som decente. Já pensou hoje ficar escutando sertaNOJO universiORÁRIO ou qualquer outro lixo o dia inteiro? Cobraria adicional de periculosidade. Mas também uma loja de discos hoje é algo inusitado.

Mas eu dizia, essa canção também fez parte da trilha sonora de uma novela da Globo. Não sei qual, só sei que era das 18 horas e que foi no ano de 1986. Só lembro da televisão ligada na novela, talvez minha mãe assistindo e a música tocando. 

O Nonico pagava o salário em duas vezes, metade na primeira quinzena e o restante no final do mês. Eu recebia 800 alguma coisa, dinheiro daquela época. Cruzeiros, cruzados, cruzados novos, sabe-se lá. Só pesquisar pelo Google qual era o dinheiro no começo do governo Sarney. Sim, esse mesmo Sarney vampirão que anda por aí, já rondava os cofres públicos naquela época e pelo que me consta bem antes disso, bem antes da década de 80, já mordia dinheiro público.

A loja ficava na praça José Bonifácio, em Santos, a mesma que tem o famoso Teatro Coliseu, o fórum e a Catedral de Santos. Naquela época uma região bem degradada, o Coliseu, um baita teatro, tinha em sua programação filme pornô ou filmes classe C. À noite a Brás Cubas, uma das ruas cujo Coliseu ficava de esquina (a outra era a Amador Bueno - provavelmente esse o endereço do Teatro Coliseu), todo pomposo, com sua história que provavelmente abrigou em seus camarotes membros da realeza brasileira, se transformava em zona do meritrício. Na verdade, até mesmo durante o dia as chamadas moças de vida fácil ficavam em frente dos prostíbulos, convidando os homens que passavam para um programa.


Eu andava pelo centro de Santos durante meu horário de almoço, vendo as vitrines, namorando as lojas de discos, de instrumentos musicais entre outras diversões que me encantavam. Gostava de passar pela Senador Feijó, onde as putas me convidavam para um programa. Eu olhava timidamente para elas e lá vinha o convite sensual para entrar.

Lembro como fiquei extremamente excitado a primeira vez que uma delas me abordou. Mas antes dessa abordagem, adquiri meu primeiro bem material na primeira quinzena do mês de dezembro de 1986: um violão Rei, marrom, daqueles cuja cor eu nunca mais encontrei, para minha tristeza e decepção. Foi nas Casas Bahia da João Pessoa. Recebi o salário e já sabia que tinha uma promoção nessa loja, por isso no meu almoço fui comprar. Voltei ao trabalho com meu 'pacote' e o Nonico, turco que era, ficou abismado de eu ter comprado à vista um violão. 'Tá certo, gastei toda minha grana, mas valeu à pena. Estávamos montando o Mayday e foi o primeiro instrumento da banda. 

Era um violão simples, de corda de aço e dias mais tarde descobri que havia comprado errado porque para estudar violão na Camerata que dava aula de graça no Teatro Municipal de Santos, era necessário ter violão com encordoamento de naylon. Então troquei todas as cordas do violão, com auxílio do professor.

Antes de estudar violão clássico no Teatro Municipal, ganhei uma bolsa de estudos para estudar em um conservatório, violão popular. Não durou muito, porque meu professor era um nordestino que gostava de Moraes Moreira e outros que na época não me interessavam. Mas me ensinou a tocar Como Vovó já Dizia, canção que o Defalla tocava em seus shows e posteriormente gravaria uma versão em seu segunda álbum. Desisti das aulas.

O segundo disco do Defalla troquei em uma loja de discos no Gonzaga, pelo disco dos Miquinhos Amestrados, Milli Vanilli e um outro que havia ganho no sorteio de um programa da Rede Cultura, em que escrevi uma carta. Era o Matéria Prima, comandado por um certo Sérginho Groisman.

Mas no final das contas, aprendi mais com as revistinhas de cifras que comprava nas bancas com as aulas no Teatro Municipal. Isso porque o que me interessava era tocar 3 acordes e fazer as minhas canções, colocar no papel meus sentimentos de adolescente rebelde e cheio de espinhas. Do it yourself era nosso lema já nos anos 80, antes mesmo da onda que décadas posteriores avassalaria os discursos de auto ajuda do capitalismo neoliberal de empreendedorismo. Era o lema Punk em sua essência, em nossas vísceras. 

Dias depois da compra do violão, naquele mesmo dezembro, se não me engano no dia 31, último dia do ano, recebi a segunda metade do salário. Com o bolso cheio e sem ter no que gastar, depois de ter comprado o disco Longe Demais das Capitais, andando pela Brás Cubas sentido General Câmara (famosa rua de Santos, conhecida pelas boates e pela zona de prostituição, inclusive já tendo sido cenário para videoclipe da banda Charlei Brown Jr.), à esquerda a pomposidade do Teatro Coliseu e à direita as antigas casas de prostituição, todas semidestruídas pelo tempo, pelo descaso e pela falta de manutenção e numa dessas casas, uma das putas me fez o convite para um programa de prazer e descobrimento.

Eu, como meus amigos, era virgem, com pequenas e poucas experiências com o sexo oposto, fiquei alucinado com o convite, excitadíssimo, um turbilhão de sentimentos jamais experimentado antes. Perguntei o valor do programa, com dinheiro no bolso, era o momento adequado para deixar esse lance virgindade de lado. 

Mas é importante contextualizar. Nessa época foi descoberto o vírus da Aids e os maiores transmissores dessa 'peste', da doença do 'amor livre' eram as putas e os gays. Era uma doença totalmente moralista. Uma arma nas mãos dos (demagogos e hipócritas) puritanos. A Aids veio refrear todas as iniciativas de liberdade sexual daquela década. Um banho de água fria em todos nós adolescentes virgens daquela época, um período em que era comum a iniciação sexual ser através de serviços profissionais de prostitutas.

Depois de titubear e ponderar, não aceitei o convite e continuei meu caminho. 


Durante esses anos minha vida sexual se resumia em rodar por essas bandas, receber convites como este e correr em uma banca de jornais para comprar uma revista pornográfica (revistinha de foda, como chamávamos vulgarmente) e bater uma punheta.

A loja de sapatos que trabalhava, que não tinha letreiro, se chamava Michel Calçados, uma alusão ao nome do enteado do Nonico. Como disse, ficava na praça José Bonifácio, praça esta que cortava a rua Senador Feijó. Uma quadra acima, sentido Porto, tinha uma pequena loja de confecções, que trabalhavam umas gurias. Uma delas era uma paquera minha. E os versos da canção acima caem como uma luva, parecem ter sido escritas para aquele meu pequeno romance utópico, como a maioria dos romances sonhadores da adolescência.

E todos os dias eu ficava esperando que ela passasse na frente da Michel Calçados. E sempre no mesmo horário, quase que combinando com meus pensamentos, desejos e sonhos, lá vinha o meu amor platônico. Por vezes trocávamos os papéis e eu passava em frente ao seu local de trabalho. Do outro lado da rua, para poder observá-la por mais tempo e para que ela pudesse me ver antes.

Eu sabia que havia reciprocidade. Eu tinha 14 anos, ela talvez tivesse 15, 16, sei lá. Nunca vou saber. Suas amigas riam insinuantemente, cochichavam entre si, algo que eu sempre interpretei como alimentando nosso 'romance'. Isso durou dias, talvez meses. Naquela época e na minha tenra idade, os dias pareciam séculos.

Até que um dia suas amigas se cansaram daquele cortejo que não saía de troca de olhares, que não avançava, me chamaram para atravessar a rua e dar o próximo passo. Essa foi a primeira oportunidade perdida na vida. Eu simplesmente tremi, não sabia o que fazer ou dizer, com as pernas bambas, virei o olhar e ignorei. Nunca mais elas me olharam ou fizeram qualquer menção de que eu existia. Mudaram o caminho para não passar na minha frente. Ali eu aprendi que não se podia deixar de abrir as portas para as oportunidades. Nunca tive a possibilidade de conversar com aquela guria. Também não tive iniciativa de procurá-la. E tudo ficou no meu imaginário. E no dela.

São lembranças que essa época do ano suscitam. E que a trilha sonora reforça.