sábado, 31 de maio de 2014

QUARENTENÁRIO - BRANCO, O MITO DOS MITOS

Branco à direita, com a camisa dos Pistols e
o Renato com a camisa do IMORTAL
Essa semana foi dureza. Sonhei três (eu disse três!) noites seguidas com o Branco, o Rato Branco, baixista da Mayday, codinome do Robson, como vocês, parcos leitores desse blog, já sabem. Não sei o que motivou esses pesadelos, mas muito provavelmente foi a foto que o Renato tirou com o Branco dias atrás e que me mandou (essa que ilustra o post, com o Branco com a camisa dos Sex Pistols.

Engraçado, porque uma das últimas vezes que fui para Santos, estava com a camisa dos Pistols. Porém, há um abismo no estilo da minha com a dele, que é bem mais legal. Sempre fico meio assim de usar uma camisa amarela, como a da Volantes que comprei no show em Maringá. A camisa dos Pistols que tenho é amarelona, da cor da capa do Never Mind The Bollocks, embora algumas versões baixadas da internet aparece cor de rosa.

O Zé Renato também tem a mesma camisa que tenho, dos Pistols e também tem receio de usar por causa da cor, que é muito chamativa. Mas enfim, o Mayday, mesmo longe e afastado há anos, continua em sintonia, curtindo o mesmo som sujo dos tempos de adolescência.

O Branco é o mito dos mitos; é o anti-herói, o cara que ficava no quarto, de costas para a janela, com o baixo no pescoço, ‘tocando’, para impressionar as pessoas que passavam, se é que alguém olhava para a sua janela. Só que o baixo dele não tinha cordas. O Branco era o cara que comprava etiqueta de roupa de marca para colocar nas roupas que comprava de baciada; para quem não sabe, baciada são as roupas vendidas nessas lojas populares, roupas que ficam nas bancadas das lojas, quase na calçada, com preços baixos, como um chamativo para o cliente entrar; o Branco era o cara que por um tempo saiu com uma das gurias mais bonitas do pedaço e como ela pediu diet coke ele também pediu a mesma bebida com a pronúncia errada (dit cuk – kkkk) e achou o gosto horrível; o Branco é o cara que saiu com a guria mais bonita do pedaço, por vários dias, não pegou, não beijou, nem na mão pegou,sem qualquer contato físico por menor que fosse, achou que estava namorando e espalhou para a galera, mas depois levou para casa um “somos apenas amigos”; é o cara que tinha chuteira, treinava na Portuguesa Santista, mas sempre que eu pedia para mostrar, desconversava; que dizia ter uma prancha, surfava, era mais branco que a puta-que-o-pariu (por isso o apelido, claro), demonstrando que pouco ia para a praia, apesar de morarmos há poucas quadras da mesma. E não jogava nada, diga-se de passagem. Era goleiro.

Se for para contar as mancadas do Branco ficaria aqui o dia inteiro. São inúmeras; por isso ele é um mito, um figuraça!

O Branco morava (e até hoje mora) na Senador Feijó, bem no final dessa rua, que começa lá no Centro, esquina com a Vidal Sion, bem na linha do trem; é a última casa da rua; a mesma rua onde a Alessandra da letra que citei posts atrás, morava. Umas duas pequenas quadras depois. Tanto que o Branco freqüentava a mesma padaria que ela e que eu. Eu morava no 144 da Julio Conceição, fazendo um triangulo com a casa do Branco e da Alessandra. No meio da quadra em que a Alessandra morava, só que na Barão de Paranapiacaba (simplesmente Barão para nós) morava o Zé Renato. O Ronaldo morava para cima da avenida Ana costa, em direção ao Centro.

O Centro de Santos, por ser antigo e próximo da zona portuária, é degradado. Se na época da Império, com seus casarões e parte da elite imperial vivendo naquela região, no século XX tornou-se  degradante, pobre e abandonado. A maioria dos prostíbulos de Santos, da prostituição de rua se encontra até hoje lá. Ao contrário das cidades do interior, morar no Centro em Santos não é status algum. O oposto, próximo à praia é que os mais abastados procuram morar. Quanto mais perto da praia, mais status a família tem.

Por perto da zona portuária é onde ficam as boates de prostituição e a zona do meritrício. A rua General Câmara, quanto mais próxima do Porto,tem mais putas por metro quadrado.

Em Santos, as pessoas não falam “vou ao centro” mas “vou na cidade”, provavelmente resquícios de uma época que morar longe do Centro significava morar fora da cidade, na zona rural. Então ir ao Centro significava ir para a Cidade. E ficou até hoje. Tanto que minha mãe, quando vem a Londrina e diz que vai na Cidade e digo que não moro no sítio...

Conheci o Branco no final dos anos 1980; na sétima ou oitava série (meu relógio cronológico usa as séries da escola para me recordar os anos – 1985 , 5ª série, 1999, 3º colegial, 1983 5ª série e assim por diante; algumas vezes uma música me lembra exatamente o ano); nosso anti-herói estava com dificuldades na escola, em Português e Matemática. Estudava no Colégio Independência, uma escola particular que ficava na avenida Conselheiro Nébias, esquina com a linha do trem, onde hoje fica a Fefis, tradicional escola superior de Educação Física que o Renato e o Dentinho estudaram e, por mais fantástico que pareça, se formaram. Hoje ambos são educadores físicos.

Naqueles anos passava pela cabeça quem seria o conselheiro Nébias, quem seria o General Câmara, que dava nome à rua da zona. Será que ele ficaria feliz em saber disso? Será que ele tinha sido freqüentador de tal pedaço de entretenimento? E o Conde D’ Eu, uma viela na parte mais velha do Centro? Era motivo para piada, rua onde o conde deu e coisas do tipo.

O Renato começou estudando Jornalismo na Unisanta. Depois desistiu e foi fazer Educação Física na Fefis. Por ter feito um ou dois semestres de Jornalismo e ter lido uns 10 livros na vida ele era considerado intelectual na turma dele. Por isso, todos os trabalhos teóricos era tarefa dele fazer e ‘bater’ no computador, como dizia na época. Não sei se ele ainda fala assim “bater no computador” ao invés de digitar, mas o pai da Luiza continua com dificuldades na informática, que para ele é coisa de outro mundo. Prova disso é que domingos desses, eu e o Rogério no skype, convidando o Renato para entrar, eu no telefone com o Renato dando o passo a passo para instalar e depois de 1 hora e meia ele descobre que o PC dele não tem câmera. Bah, vai a merda! Foi uma gargalhada só, eu em Londrina, o Rogério em Navegantes e o Renato em Santos. Baita mundão globalizado e sem distâncias. Daí ele pegou o notebook e graças ao João Vitor, filho mais novo do Beto, conseguiu finalmente instalar. Ufa! Nisso já eram mais de 10 horas da noite.

Não sei se o Independência ainda existe. Mas se existe não fica mais no endereço que ficava nos anos 1980. Era lá que o Branco estudava. Ele quase não saia na rua para brincar. Vez ou outra eu o via andando com sua Caloi Cross Extra Nylon vermelha, top da época, só perdia para a Extra Light, pelas ruas do pedaço, mas sem se afastar muito de casa.

O Branco tem uma irmã, que nessa época era casada e que num rompante desses da adolescência, no meio da madrugada, fugiu do quarto e foi acampar com os amigos, onde conheceu o futuro marido e, devido a rigidez dos pais, namorou escondida até engravidar e ser obrigada a casar. Coisas de adolescentes, sempre fazemos as cagadas achando que sabemos de tudo. Mas isso, bom ou não, é a vida, afinal de contas, depois temos histórias para contar. Não fossem esses rompantes adolescentes e eu não teria nada para contar nesse blog.

A educação do Branco sempre foi muito rígida. E como ele havia estudado numa escola ao lado do Dino Bueno, que não me recordo o nome, mas que posteriormente se chamou Marczak, com o Zé Renato da 1ª à 4ª série, suas mães se conheciam. E a dona Margarida, mãe do Branco foi conversar com a mãe do Zé Renato sobre as dificuldades escolares do filho. A mãe do Zé Renato comentou que eu era um cara que entedia de matemática e que poderia ajudar.

E foi assim que eu conheci o Branco, dando aulas de Matemática particular, ganhando uns troquinhos e lanchando nessas tardes na casa dele. Só dei aulas de Matemática, porque em Português nunca fui muito bom. É muito difícil. Ele passou em Matemática e ficou de DP em Português. É o que a minha memória me fala. É o que o meu ego gosta de pensar.

Na sétima série dei aula particular de Matemática para o Erik, que me pagava uma grana, inclusive com essa grana comprei meu primeiro disco, do Capital Inicial, e também para outras pessoas da sala, mais informalmente, no intervalo de uma aula para outra ou mesmo antes da prova, quando todos ficavam desesperados. Meus ‘alunos’ passaram de ano. Meu irmão Renato também tinha dificuldades em Matemática, na 5ª série, esse mesmo ano de 1985. Quem deu aulas particulares para ele foi o Flávio, vulgo ‘Chopinho’ que estudava comigo e era meu amigo desde a 5ª série, tipo melhor amigo, ele e o Zé Renato. Meu irmão reprovou aquele ano, com a temida professora Vilda e o professor particular Flávio gordo. Quem estudou no Dino Bueno naqueles anos sabe bem quem era a Vilda e do que estou falando. Muita gente reprovou diversas vezes com ela, que era extremamente rigorosa. Era o terror do Dino Bueno. A verdadeira ‘bruxa’. Não dava um sorriso em sala de aula, não fazia um comentário agradável, era fria e dura com os alunos. Não demonstrava qualquer emoção e era pouco afetiva.

Na formatura da 8ª série, entrega de diplomas, as mães dos meus colegas chegavam até minha mãe e dizia que eu tinha ajudado muita gente a estar ali. Mas não só com as aulas particulares de Matemática, mal elas sabiam, muito mais com as colas das provas de Matemática, da professora Ângela. Essa sim amada por todos, mas odiada pela disciplina que dava.

No verão do ano que conheci o Branco, de quem só conhecia de vista, meio isolado nos seus passeios escassos e curtos com sua Caloi Cross Extra Nylon vermelha, o Zé Renato viajou para a fazenda dos tios, em Tambaú, interior do estado de São Paulo. E o Zé Renato era meio que intermediário na amizade que eu e o Branco ainda não tínhamos. Sem ele eu não procurava o Branco, talvez por falta de intimidade maior.

Por semanas, sem o Zé Renato, deixei o Branco de lado e não ia chamá-lo para brincar. E aos poucos comecei a achar sacanagem não chamar, coisa de quem não era amigo. Decidi ir chamar, mais por obrigação do que por interesse. Mas todas as vezes, com certo alívio, ele nunca saia, porque ou não estava em casa ou tinha algum compromisso. Depois descobri que ele não podia brincar na rua, os pais o mantinham sob regras rígidas, superprotegiam o guri. E, mais tarde, já devidamente inserido em nosso grupo de amigos, quando saia no sábado, não podia sair no domingo e vice versa. Daí nós íamos escutar um som na sua casa e ficávamos trancados no quarto dele, porque ele não podia sair. E ele tinha o melhor aparelho de som de nós quatro (o Ronaldo já andava conosco nessa época), um gradiente com duplo deck e muitos recursos modernos, um luxo na época.

Por vezes, domingos monótonos, que nem o Branco e nem o Ronaldo estavam conosco, eu e o Zé Renato ficávamos sentados em um muro de uma casa comercial na Afonso Pena esquina com a Conselheiro Nébias (nessa época eu morava na Campos Mello, ali pertinho e o Zé Renato na Afonso Pena, passando o canal 4, onde ele mora hoje) e reclamávamos do tédio que se instaurava, sem o Branco ou o Ronaldo para tirar sarro. Então ficávamos ali, conversando sobre coisas sérias e sem graça lamentando a vida e sonhando com dias mais animados. O Branco estava morando atrás da Gota de Leite, uma creche que fica próximo à Capitania dos Portos, na Conselheiro Nébias. Nessa casa que ele ficava de costas tocando baixo na janela, o baixo sem cordas.

Certa vez, o Branco apaixonado pela Ekatherine, uma greguinha que morava na Barão e que era da sala do meu irmão Renato, também da sala da Alessandra ‘saia pra fora’, contando as maiores lorotas de surf dele, que ia para a praia e nunca levava a prancha (mais um mito do mito dos mitos), sempre a rodeando com suas fantasias, achou que era hora de investir. Nós éramos todos feiosos, adolescentes punheteiros, magrelos e espinhudos, a Ekatherine toda lindinha e delicada, quase puritana (assim gostávamos de pensar nas nossas ‘musas’) não sei como ia para a praia com a gente; não sei como andava com a gente!Então ele resolveu se declarar. Um fanfarrão, isso que o Branco era. A Katy era muita areia para o caminhãozinho de todos nós juntos. Que dirá individualmente.  

Antes dele se declarar, numa dessas andanças sem rumo, estávamos na verdade indo na casa do Erik, que tinha vídeo cassete, tinha revistinha pornô na casa dele, era nossa maior fonte de pornografia da 6ª série, assistir a algum filme mais picante (lembro de ter assistido Oh Calcutá na casa dele) e numa dessas sacanagens de adolescentes pegamos a carteira do Branco. Dentro a cartinha para a Katy. Aquilo foi motivo de sarro para o Branco por semanas.Claro que essa carta nunca chegou às mãos da Katy. Era muito ridícula!

O Erik foi responsável pelo primórdio de nossa educação sexual, com sua coleção infindável de revistas pornôs. Eram as melhores que tinham no mercado, com bom acabamento. No final da Educação Física, que era de manhã, fora do horário de aula normal, íamos em casa para pegar as revistas e trocar. Isso porque eu morava mais perto da escola. Daí em frente de casa ficava aquele alvoroça, a galera toda ansiando pelas revistas novas.

Não posso terminar esse post sem contar a maior mancada de todas do Branco. Já éramos um pouco maiores, talvez 16 anos. Punks e revoltados com o sistema, que não nos dava nada a não ser subempregos que nos exploravam e as angústias de todo adolescente. As gurias não queriam saber de nós, era um pira só. Por isso havíamos montado uma banda, para ver se esse último aspecto melhorava. Mas elas gostavam de surfistas, de ‘boyzinho’ e não de roqueiros.

Nas nossas cabeças revoltadas rolavam muitas idéias rebeldes e terroristas, como fazer bombas caseiras e jogar nas casas dos carecas, dos metaleiros, enfim, praticar a anarquia. Nunca fizemos isso, graças a Deus, mas essas idéias passavam pelas nossas cabeças. Nosso sonho era ter ficha na polícia. Era a coisa mais punk de todas, ser preso e ter ficha na polícia. Mas, tirando essa idiotice, o que queríamos na verdade, era diversão.

E então, depois de muito conversar, muitos sábados à noite na Caneleira (bairro que fica próximo ao morro do Jabaquara, na Zona Noroeste de Santos – as cidades têm zona norte, sul, leste e oeste, Santos tem zona noroeste), muitas bebedeiras dos caras, muitos vômitos e desmaios do Pipa, que bebia pra caralho, vomitava pra caralho, passava mal pra caralho, desmaiava e ficava lá na rua caído, íamos embora deixando ele desacordado e nas manhãs de domingo sabe Deus o que passava pela sua cabeça quando acordava sozinho, com o sol a pino. Por certo nem lembrava do que acontecia. Isso porque não aprendia, no sábado seguinte era a mesma coisa. E no outro e no outro... como já o conhecíamos, íamos embora e o deixávamos na sarjeta. Não tinha jeito de levar aquele brutamontes nas costas e tínhamos que ir embora. E noites e noites de sábado, entre a neura de escutar um som e de sonhar com a banda,com mulheres, diversão e grana, decidimos que faríamos uma festa punk, uma espécie de Começo do Fim do Mundo, um show punk que ocorreu em São Paulo com todas as bandas da época, em Santos, só que sem as bandas, apenas com a galera e música eletrônica, ou seja, disco ao invés de instrumentos musicais.

Os contatos foram feitos, mesmo sem existir internet, a comunicação foi tão perfeita que iriam os caras de Guaianazes (periferia de São Paulo, barra pesada na época) e mais uma galera de Sampa. Estava tudo certo, a família do Branco tinha uma casa que não estava alugada, um sobrado, perfeito para a festa punk, depois a galera dormiria lá e fim de papo. Seria uma noite de muita anarquia e punk rock. Provavelmente com drogas e sexo rolando. Estava interessado no sexo. As drogas nunca me seduziram. Ficava doidão por natureza. Fico doidão sem usar droga, basta o bom e velho roquenroll em decibéis elevadíssimos.

Local da festa acertado, toda a logística preparada, seríamos o anfitrião dos punks de Sampa, uma honra para nós, ganharíamos moral e seríamos chamados para o que rolava em Sampa. Um salto em nossas vidas monótonas. Enfim nossa inclusão social, nossa inclusão no pulsante mundo dos agitos undergrounds. Dias e mais dias organizando, pensando, preparando a logísitca, bebida, som, etcetera. O Branco fez até um moicano. Não esse moicano que é moda hoje, mas o mais agressivo de todos os moicanos, daqueles que o cabelo fica muito em pé, totalmente punk.

Chegando o dia da festa, começamos a procurar o Branco. Ele havia sumido. Vai um, outro, eu, o Zé Renato, todos de uma vez, um de cada vez, na casa do Branco, chamar ele, conversar com ele para combinar e ele não aparecia, os pais sempre inventando uma desculpa. E nós desesperados, porque estava tudo marcado com os caras de Sampa e como a comunicação era mais lenta que hoje, poucos tinham telefone, seria muito difícil cancelar a festa e o mico de receber a galera de Sampa sem festa seria muito grande. Ficaríamos queimados para sempre. Fora o risco de apanhar ou de ficar andando com um monte de malucos pela cidade.

Foi um sufoco! Felizmente conseguimos impedir que a galera de Sampa descesse a Serra. Ficamos queimados para sempre com eles. Não bateram em nós porque não desceram a Serra. Se tivessem descido, levaríamos eles na casa do Branco. Eles invadiriam para pegar o Branco.

O Branco se divertiu com o moicano no dia em que fez. E só naquele dia, porque ao chegar em casa, a mãe pegou pelas orelhas, levou no barbeiro (cabeleireiro era coisa de mulher) para raspar a cabeça. O Branco só foi aparecer na roda tempos depois, quando a raiva de todos já havia passado. Ficou para a história. Mais uma das mancadas do Branco. A maior de todas.


No fundo, naqueles anos, o que fazíamos era afogar nossas mágoas, frustrações e tristezas adolescentes. Nunca fizemos mal a ninguém, nem a nós mesmos. Apenas vivemos intensamente nossa época. E nos divertimos!         

sábado, 24 de maio de 2014

QUARENTENÁRIO – O MEU PRIMEIRO DIA NA ESCOLA

“Ainda me lembro aos três anos de idade
O meu primeiro contato com as grades
O meu primeiro dia na escola
Como eu senti vontade de ir embora...”

Em 1978 comecei a ir para a escola. Era o Jardim de Infância, no Grupo Escolar Ceará, ou simplesmente Ceará. Anos mais tarde, achava cômico e tinha uma certa vergonha em falar que havia estudado no ‘Ceará’; um certo preconceito contra os nordestinos. Achava que os outros pensariam que eu era do Ceará, porque eu tinha um sotaque diferente em Santos (sotaque carregado de alguém recém chegado de Porto Alegre) e havia um preconceito grande contra os ‘baianos’ (todos os nordestinos são chamados de baianos em Santos, de forma pejorativa).

Fachada atual do Ceará e já com nome mais moderno
Pouco lembro dos tempos do Ceará. Ainda mais porque perto do final do ano, não sei exatamente em que período, todos em casa pegaram hepatite. Menos o Beto. Aliás, o Beto nunca ficou doente. Pelo menos não durante o tempo que morava conosco, nunca vi o Beto com qualquer problema de saúde. Depois que sai de casa aos 18 anos, não soube de qualquer doença dele. Apesar que, na realidade, ele saiu antes de casa, mas morava em São Bernardo e sempre descia para Santos, comportamento que matem até hoje, perturbando e enchendo o saco da mãe. E quando não vai ele, vão os filhos. Os rituais passados de geração em geração.

No caso da hepatite, minha mãe descobriu que algo estava errado quando o Rogério, que amava bater uma bolinha na calçada do outro lado da rua, em frente de casa (calçada da casa do Alexandre), que era mais larga que a calçada do nosso lado, com os amigos e de repente, do nada, ficara estranhamente quieto em um canto da casa, sem vontade de nada; também estranhou o carnívoro não comer bife, o que sempre foi sua preferência: bife com qualquer coisa. Levou ao médico e logo percebeu o que acontecia.

E daí fomos nós todos, um a um, também ficando doente. Porém, todos se restabeleceram rapidamente. Eu demorei um pouco mais. Não lembro quanto tempo, porque na infância tudo parece ser maior do que é. E o tempo não é exatamente ‘exato’ como é agora. Era mais demorado. Um minuto demorava bem mais para passar do que hoje. A semana então, demorava meses para passar; natal e ano novo eram muito demorados, talvez uns 2, 3 anos para chegar; uma eternidade!  A noção de tempo era bem diferente.

Lembro que, como eu era muito ‘encapetado’ não parava quieto e desrespeitava as ordens de ficar em repouso e saía para o quintal, jogar bola, fazer minhas estripulias. Por isso demorou mais para sarar do que os demais. Como resultado, não voltei mais para minha sala de aula do Ceará, comandada pela professora Darci. Darci Veríssimo, que guardava um certo parentesco com o Erico, o maior escritor que esse Brasil já viu, ou leu.

Corredor do Ceará, em 2011
Como o Jardim de Infância não teve fim, foi ‘abortado’ antes e como consequencia minhas lembranças daqueles dias, meu primórdio na escola, são pequenas. Achava que o colégio ficava longe de casa, lembro do Castelão, supermercado que ficava na avenida Teresópolis, que eu tinha que atravessar. E já no final dos anos 70, em Porto Alegre, era difícil de atravessar uma avenida daquelas. Tinha que me esforçar para alcançar o botão que fechava a sinaleira e abria para o pedestre. Geralmente pedia ara alguém apertar. Eu devia ser um pirralinho com seis anos... todo mundo é um pirralinho aos 6 anos. Anos mais tarde, já no ginásio, Dino Bueno, a Solange me chamava de ‘Miniatura’, porque além de pequeno era muito magrelinho, franzino. 


Em tempo, a Solange era a inspetora de alunos mais gostosa da estória do Dino Bueno e que nossa memória possa lembrar e que preenchiam todos os nossos sonhos eróticos de pré adolescentes/ adolescentes.

Voltando a Porto Alegre do final de década de 1970 e ao Grupo Escolar Ceará, tinha impressão que atravessava a cidade para chegar em casa. Mas qual nada, anos atrás fiz o percurso e percebi que morava a menos de 500 metros. Andava menos de meia quadra, atravessava a avenida Teresópolis, e mais uma quadra e estava em casa. Bem pertinho assim. Mas como uma formiga no mundão do quintal de uma casa, era eu com 6 anos no bairro de Teresópolis.

Casa que nasci e morei em P. A.: 1073 da Clemente Pinto
Das poucas lembranças que tenho é de um guri, irmão de um amigo do Rogério, meu irmão mais velho, que era da minha sala. Acho que o nome dele era Douglas. E que guri encapetado! Vivia aprontando e eu morria de medo dele. E o que acontecia na saída? Todas as mães e pais buscavam seus filhos na hora, mas minha mãe atrasava... o pior é que a dele também! Resultado: todos iam embora e eu ficava sozinho... com o Douglas! E as brincadeiras dele não eram legais. Não sei dizer ao certo quais eram, porque a memória me trai exatamente nesses pontos (talvez um bloqueio proposital, um mecanismo de defesa); possivelmente aquelas brincadeiras de briguinhas, jogar pedra um no outro, coisas ‘suaves’ desse tipo. Deve ser por isso que resolvi “atravessar a selva que me separava de casa” e comecei a ir embora sozinho.

No início de 1979 fizemos nossa mudança para Santos. Uma merda sair da nossa querida e amada Porto Alegre. Mas o destino nos reservava aquilo, viver e crescer longe de nossa terra natal, longe do IMORTAL TRICOLOR, do Olímpico Monumental e todas as suas glórias. Essa talvez seja minha maior frustração nesta vida.

Chegara então a hora de ir para a escola, em Santos, na primeira série. E é esse o dia que lembro como sendo o que ilustra o que dá nome a esse post.

Nessa época eu morava no 123 da rua Espírito Santo, no apartamento 23, famoso Edifício Nadir, mais conhecido como “Balança”. Se tu chegares em Santos, no bairro Campo Grande, canal 2 e perguntares sobre o Balança, todos saberão te indicar onde fica. É praticamente um monumento do bairro, um cartão postal, uma atração turística.

No começo dos anos 1980, final da década anterior, havia um programa chamado Balança mas não Cai. Era um humorístico da Globo, uma espécie de Zorra Total, provavelmente igual, porque esses programas são todos uma cópia do outro. Como o Edifício Nadir era uma bagunça total, sem dono, sem síndico, sem nada, o Beto e a galera que andava com ele, apelidaram carinhosamente o prédio em que morávamos assim. E o apelido pegou tão bem, que até hoje todos conhecem o prédio. E até hoje carrega essa característica (de bagunça, mausoléu, de mal cuidado mesmo, enfim, de abandono). Dizem que para morar lá é só levar a mudança e pegar o apartamento que estiver vazio, uma espécie de invasão. Nos anos de 1980 era um pouquinho mais organizado. Pouca coisa.

O 123 da Espírito Santo fica há umas 4 quadras da Avenida Ana Costa, onde fica o Dino Bueno. Para ser mais exato, daquele prédio em estilo gótico que abrigava a Escola Municipal de Primeiro Grau Dr. Dino Bueno. Hoje, infelizmente, para os saudosos, o Dino Bueno perdeu sua identidade e fica em um prédio novo, na Carvalho de Mendonça, algumas quadras em direção ao canal 3. E no prédio do Dino Bueno, em construção gótica, que chamávamos de Castelo, provavelmente o era em séculos passados, funciona outra instituição do município hoje em dia.

Prédio do antigo Dino 'Maloca' na atualidade: aparência menos
amedrontadora do que na década de 1980
O Dino Bueno, carinhosamente apelidado por nós, seus alunos, de Dino Maloca ou simplesmente Dino, passou por algumas transformações ao longo daquela década de 1980. E poucos alunos sobreviveram e permaneceram no Dina após essas mudanças, como eu, o Silvio Junior, o português Manoel. Estudávamos na época em que a escola era estadual e quando cheguei na 4ª série a escola foi municipalizada. Todos os alunos foram para o Cleóbulo Amazonas Duarte que ficava (e continua) no canal 3. Mas esses personagens citados permaneceram no Dino Bueno. Foi lá (no Dino) que vivi os melhores (e os piores) dias do meu início de adolescência. E deixou muitas, muitas saudades; assim como algumas lembranças.

No meu primeiro dia na escola fui inseguro, com medo, choroso, apreensivo. Não sabia exatamente o que encontraria. Recém tínhamos chegado de Porto Alegre, não conhecíamos nada da cidade, falávamos diferente, naqueles anos 1980, pouca mobilidade, poucos eram os migrantes. E poucas eram as informações. As distâncias de uma cidade para outra, de um estado para outro eram enormes.  E o gaúcho costumava migrar para o interiorzão, tanto que tem a famosa rota oeste da gauchada, que pega todo o oeste desse país chegando até o norte mais inóspito (o norte que fica a oeste, se é que dá para entender alguma coisa). Mas nós fizemos diferente, fomos para a urbanidade do leste, do litoral. E essa mudança brusca deve mexer com um guri de 7 anos.

Além disso, e até por isso, pela pouca migração entre estados, pelo pouco de gaúcho que tinha em Santos, devíamos ser como ‘et’s’ na vizinhança, com aquele sotaque carregado de portoalegrense, utilizando de um vocabulário totalmente desconhecido pelos caiçaras. Era um mundo tão estranho para nós, migrantes, quanto para aqueles que se relacionavam conosco. Na manhã seguinte a nossa chegada, a mãe vai à padaria comprar pão; imagina a confusão: pede 10 ‘cervejinhas’. O português (em Santos padaria e português são sinônimos) pergunta se queria gelada ou fora do gelo. A mãe achou que estava tirando um sarro dela, ficou sem graça e não sei qual foi o desfecho desse diálogo, mas ela chegou em casa com as 10 ‘cervejinhas’ para nosso café da manhã. E não era cerveja, mas sim o que o santista chama de ‘média’, o famoso pão francês nosso de cada manhã. E estavam bem quentinhas para o nosso desjejum daquele dia!

Provavelmente nossa adaptação foi mais difícil do que seria hoje. Mesmo com meu tio Luiz morando no mesmo prédio, no bloco dos fundos.

Naquele primeiro dia de aula, do 1º ano, eu carregava uma sorte de inseguranças. Sabe Deus quais eram. Mas haviam! E lá fui eu, com a mãe me levando pela mão até aquela escola enigmática. E eu com meus fantasmas internos, indo para aquela construção fantasmagórica.

Ao chegar na porta da sala de aula (engraçado como antes deixavam os pais irem até a porta da sala. Possivelmente eu estava atrasado...) comecei a chorar e dizer que não queria ficar. Uma década e alguns anos depois o Victor teria a mesma reação ao trocar de escolinha. Só se aquietou quando viu um amiguinho da antiga escolinha, o Pedrão, que na época era o Pedrinho, e se sentiu mais seguro. Mas eu não tinha nenhum amiguinho da outra escola, a não ser que, muito improvável, alguém tivesse se bandeado de Porto Alegre para Santos na mesma época e que tinha estudado o Jardim de Infância no Grupo Escolar Ceará em 1978... muita coincidência, que, óbvio, não aconteceu naquele princípio de 1979.

Não queria entrar de jeito nenhum. Comecei a implorar para minha mãe não me deixar na jaula dos leões, não me jogar aos leões. Era assim que eu me sentia, sendo jogado aos animais selvagens, abandonado à própria sorte e sozinho, sem ter como me defender. Deve ter sido um pequeno escândalo, na porta da sala, todos os guris olhando, das suas carteiras, curiosos e talvez impacientes. Ou apenas observando o desfecho, sem pensar em nada. Até que a professora, se não me engano chamada Débora (prometo que antes de postar vou ligar em Santos e perguntar para minha mãe o nome dela exato e também sobre o desfecho das 10 ‘cervejinhas’), que morava na rua Pará, uma quadra da Ana Costa e consequentemente há uma quadra do Dino, numa bela casa, disse que eu poderia ir embora, não tinha importância, mas que eu perderia a estória que ela contaria naquele dia.

Opa! Alguma coisa aconteceu em mim. Não sei o que foi despertado, além da curiosidade. Um estalo! O fato é que aquelas doces palavras da professora me tocaram. E eu fui aos poucos me interessando em ficar. E então, depois de pensar melhor, acabei ficando, para saber qual era essa tal estória que a professora contaria. Desde pequeno sempre gostei de uma boa estória.   

Logicamente que não lembro qual era a estória. Mas eu fiquei. E o Manoel, o português que comentei acima, durante anos tirava sarro de mim, lembrando desse episódio, que ele, aos 7 anos presenciou de sua carteira, de dentro da sala de aula. Como ele morava perto de casa, na Almirante Barroso (a Almirante, como chamávamos, abreviadamente), passava em casa para irmos juntos para a escola.

E assim foi meu primeiro dia na escola. Meio traumático, amedrontador, meio curioso, muito divertido. Principalmente para os que estavam de fora e observaram de camarote o meu choro. Deve ter virado assunto no almoço da família de muitos daqueles pequeninos alunos.

Estranhava o fato de todos chamarem a professora de ‘Tia’. No começo achava que ela era tia de todos os alunos, menos minha. Mas não entendia como alguém podia ter tantos sobrinhos... foi a professora Débora, com sua inteligência e perspicácia, e porque não, sedução, quem me manteve na sala de aula naquele dia; e, sou muito grato a ela por isso (e por tantas outras coisas que me transformaram no que sou hoje), me alfabetizou. Não sei se ainda é viva, mas sempre será especial para mim.

Eu costumava pegar os gibis da Disney dos meus irmãos e ficar olhando as figurinhas, antes de dormir. Certa noite, comecei a juntar as letras e ler as palavras, as frases. Que surpresa, eu começava a dar meus primeiros passos no maravilhoso campo das letras. E todos os dias era a mesma coisa: eu deitava, pegava meu gibizinho com as estórias do Pato Donald e do Tio Patinhas e lia voz alta, daquele jeito devagar e monótono de quem está começando a desbravar as primeiras leituras aquelas divertidas estórias. Lembro do Beto (o irmão mais ranzinza) reclamar que eu lia em voz alta, que o incomodava. Eu dava de ombros e seguia lendo meus gibis.

Ao longo dos anos no primário, que hoje se chama fundamental 1, nunca consegui chamar minha professora de ‘Tia’. Sempre a chamei de professora, apesar de todos a chamarem de maneira diferente. Acredito que isso tenha facilitado em minha adaptação na 5ª série, quando já crescidos, os alunos tentavam não chamar as professoras de ‘Tia’.

De qualquer forma, devo muito à ‘Tia’ Débora, que teve paciência comigo não só no primeiro dia, como nos demais daquele ano de 1979, porque depois que me enturmei virei uma pestinha, mas principalmente por ter me auxiliado nos primeiros passos para as letras.

“... fazia tudo que eles quisessem,
E acreditava em tudo que eles me dissessem,
Me pediram para ter paciência, falhei

Gritaram: cresça e apareça!”

sábado, 17 de maio de 2014

JUST A MINUTE


“Que coisa tola que é o amor... fica o tempo todo a nos dizer coisas que não vão acontecer e fazendo-nos acreditar em coisas que não são verdades.” (Oscar Wilde).

Esse é o trecho final do conto O Rouxinol e a Rosa, de Oscar Wilde. Como estou lendo a biografia dos Smiths “A Light That Never Goes Out” de Tony Fletcher, obviamente que surge o desejo de ler o autor que é ídolo do Morrissey. E um dos contos mais legais é esse que reli hoje cedo, na academia. Leitura instigante, história sobre a injustiça causada pelas pessoas que não se atentam no esforço que as pequenas coisas exigem de cada um de nós. Quando olhamos apenas para o resultado final e não pensamos ou percebemos que houve todo um processo, podemos incorrer nesse tipo de injustiça.

Ler sobre os Smiths claro que gera um desejo imensurável de ouvir a banda durante o processo. Mas como o escritor começa dos primórdios, desde quando o pai e a mãe de Morrissey (e Marr), ainda jovens, saem da Irlanda com suas respectivas famílias, antes mesmos de se conhecerem, ainda não cheguei nem na formação da banda, mesmo tendo lido mais de 130 páginas. Sendo assim, no atual momento em que estou, ainda está rolando as influências que Morrissey e Marr tiveram, tais como New York Dolls, Patti Smith, Gang of Four, Bowie e bandas de Manchester, como Buzzcocks e Joy Division. E o é o que acaba rolando na ‘vitrola’.

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“... pequenas porções de ilusão
Mentiras sinceras me interessam...
Teu corpo com amor ou não,
Raspas e restos me interessam...”

Muito se fala do Cazuza. Sempre se falou muito, para o bem e para o mal. Lembro quando foi lançado o filme sobre a vida dele, que gerou uma chuva de críticas, do tipo ter um “herói” para a juventude dando o exemplo dele, de drogado e degradado, na verdade um desajustado social. Ame-o ou odeie, o cara tinha uma genialidade insuperável. As estrofes acima dizem por si só.

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Temos a errônea idéia de que morar na praia, na montanha, no sítio, em uma chácara é como se todo dia fosse domingo, feriado ou férias.

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Se pode acordar em um lugar diferente, se pode acordar em um horário diferente, porque não pode acordar como uma pessoa diferente?

Não sei o autor dessa frase. Acho que assisti em algum filme e anotei; ou em algum livro que li. Sei lá. Mas chamou a atenção. Não porque seria algo impossível de acontecer ou absurdo, mas porque é exatamente o que acontece a cada abrir de olhos após um sono reparador que separa a noite do dia. E os dias que somam as semanas, os meses, os anos. Só sei que não sou quem eu era o ano passado; a Juliana de hoje não é a Juliana que me apaixonei há 23 anos atrás, aquela guria de 17 anos; eu não sou mais o Márcio que ela se apaixonou. E faz tempo!

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Às vezes me dá vontade de parar o tempo, de parar no tempo; observar a copa das árvores, as folhas caindo devagar ao sabor do vento; olhar o rio seguir seu destino preguiçosamente, o mar no seu vai e vem entediante, com a maré levando aquilo que a onda trará de volta, pensando que o que vai, de alguma forma volta, só que de uma maneira modificada.

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Sempre que escuto Lou Reed me dá vontade de escutar Velvet Underground; e vice-cersa. O mesmo não acontece quando ouço Morrissey e Smiths ou outro ex-vocalista de uma banda. Só acontece com o Velvet e Lou Reed. Não é uma coisa que leva a outra, apenas a exceção.

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Ler andando é uma delícia! Mas me faz perder a paisagem e a poesia urbana do caminho para o trabalho.

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Não tenho sotaque de nenhum lugar. E acabo falando diferente em cada lugar em que me encontro. Me sinto literalmente como um cidadão do mundo.

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O herói de um filme hoje, é apenas um velho acabado e muitas vezes esquecido amanhã. 

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“Me fiz em mil pedaços, pra você juntar...” (Renato Russo).

domingo, 11 de maio de 2014

DIA DAS MÃES 2014

Hoje é o segundo domingo do mês de maio e consequentemente o dia das mães. Desejo a todas as mães muita saúde e paciência para seguirem na cada vez mais dura e árdua tarefa de educar seus filhos. em especial à minha mãe, D. Sirlei, mandando vibrações positivas para ela até Santos, onde ela mora e para a mãe dos meus dois filhos que a cada dia dão mais trabalho e são fonte não só de orgulho, de prazer, mas também de muita preocupação e dos meus (ainda) poucos fios de cabelos brancos.

Como homenagem, selecionei algumas das canções mais lindas que foram criadas por grandes nomes do rock mundial para suas mamães.

"Mamãe querida..." bem, não vou tentar declamar um poema, como o Kiko tentou em vão declamar com interferência do Chaves a todo momento.  

Começo com a maravilhosa I Know it's Over, dos Smiths, que por muito, muito tempo foi minha canção predileta da banda, em especial essa versão do álbum Rank, póstumo e ao vivo, contando com a participação de Craig Gannon na segunda guitarra, dedilhadas dilacerantes que atingem as profundezas da alma.


Em seguida uma das canções mais doloridas escritas por Billy Corgan, influenciado pela morte de sua mãe.


John Lennon escreveu essa canção com sentimento dúbio de amor e ódio. Linda canção, para emocionar qualquer mãe.


Por fim, Pink Floyd, a bela canção escrita para o disco antológico e conceitual The Wall. Também uma homenagem aos meus filhos, Victor, que disse ser a banda predileta dele, junto com Mutantes e o Gui, que diz ser uma das maiores de todos os tempos, juntamente com Doors.

sábado, 10 de maio de 2014

QUARENTENÁRIO - MAYDAY: HISTÓRIAS DE ROCK E SONHOS

A Mayday na sua formação original era eu (Márcio Mayday) nos vocais e guitarra, Zé Renato (Johnny Alienado) nas guitarras, Robson (Rato Branco) no baixo e Ronaldo (Ronaldo Anarquista, alcunha que eu e o Zé Renato inventamos para ele) na bateria.

Nos primórdios éramos eu, Ronaldo, meu irmão Renato, César “cara de cachorro”. Eu tinha 13 anos, estava na sétima série. O Ronaldo tinha 12, o Renato e o César 11. Os três estudavam na 5ª série do lendário Dino Bueno, eram da mesma sala. Tinham mais dois caras que faziam parte da banda, não me lembro quem eram. Ninguém tinha instrumento ou tocava alguma coisa.

Era época da febre de um quadro no programa do Silvio Santos chamado Porta da Esperança e o César inventou de mandar uma carta para o programa para ganharmos todos os instrumentos. Falo isso com uma puta vergonha alheia, mas participei dessa piada. Não sei se a carta foi enviada, mas essa era a principal idéia, o plano “A” da banda para dar certo e termos os instrumentos.

A banda não tinha nome. Estávamos pensando em algo duplo, como Capital Inicial, Legião Urbana, Engenheiros do Hawaí, coisas assim. Até que o Ronaldo, fã incondicional da Legião e do Renato Russo, veio com Legendários do Brasil (mais vergonha alheia) e então decidimos por esse horripilante nome. Não tinha melhor (pior) e acho que ainda não tínhamos exercitado nem um pouco da nossa criatividade.
Nessa época já rabiscava umas letras bem idiotas e também infantis, como o caso de Alessandra, uma letra que escrevi com o Tony Penedo, um grande amigo que a vida separou:

Acordo todo dia, vou pra padaria
Fico um tempo lá, vendo se ela está
Começo a jogar bola, torcendo que ela saia pra fora
A bola cai lá e eu pensando que ela ia pegar

Aí eu peço

Alessandra, saía pra fora,
Que eu quero te beijar
Alessandra, pegue minha bola
Eu não me canso de te amar.

Apesar de infantil, a letra carrega um duplo sentido sacana. Talvez essa tenha sido a primeira letra de música que fiz. Mas nunca musiquei, porque tempos depois percebi o ridículo. A história é real, porque fomos eu e o Tony, um sábado de manhã, na padaria, jogar bola, e a bola realmente caiu na casa da Alessandra, que morava ao lado. Ficamos inspirados e começamos a cantarolar esses versos ‘maravilhosos’. Cheguei em casa e escrevi.

À esquerda casa da Alessandra, à direita a padaria: inspiração
Alessandra foi uma das minhas paixões do Dino Bueno. Paixão platônica, diga-se de passagem. Nunca me deu a menor bola. Gostava do Magoozinho, que gostava da Ekaterine, que gostava de um dos manos, que finalmente gostava dela. Magoozinho era o Frederico, cegueta (daí o apelido), Ekaterine era uma guria linda, grega, que tempos depois foi morar na Grécia e os manos não têm nada a ver com a conotação dada hoje de cara da periferia que curte rap, hip hop, eram os gêmeos Alessandro e Adriano, que se tratavam por mano.

A Legendários do Brasil teve uma vida curtíssima. Quando eu falei que precisaríamos aprender a tocar e que iria matricular todos no curso de violão do Teatro Municipal de Santos, porque teríamos que estudar música, o Renato processou apenas a palavra ‘estudar’ e pulou fora. O Zé Renato queria montar uma banda e ficou fudido que eu não o tinha chamado para isso. Então eu saí dessa banda com nome horroroso e levei comigo o Ronaldo. Éramos eu na guitarra e vocal, o Zé Renato na guitarra e o Ronaldo na bateria. Faltava um baixista. Como não tocávamos nada, chamamos o Branco, que tocava menos ainda, com uma condição: comprar o baixo. Aquela idéia esdrúxula da Porta da Esperança do César foi totalmente abortada, graças a Deus! O nome vergonhoso Legionários do Brasil também foi para o brejo. Então sugeri Kaos e ficou por um tempo com esse nome.

O Kaos durou pouco, porque descobrimos que existia uma banda punk de São Paulo chamada Kaos 64. Se não eram de São Paulo, eram de Brasília, uma banda de Oi, uma vertente do punk, mais pesada, misturada com Ska, cantada por nacionalistas nazistas e racistas, cuja banda mais conhecida é o Vírus 27 (de Oi, não necessariamente com essa ideologia), que comecei a curtir por uma época, que virei nacionalista. O fato é que pelo nome da banda, tivemos que mudar de nome. E foi o que fizemos.

De novo sem nome, continuávamos a criar canções, até o Branco arriscava umas letras, mas nenhuma prestava para o propósito da banda. O Ronaldo raramente escrevia, acho até que o Ronaldo nem sabe ler e escrever até hoje, kkkk, tipo Tiririca. Mas tinha muitas idéias, nem sempre boas – o primeiro nome da banda demonstra o tipo de idéia. Mas a cabeça dele funcionava, se tivesse um bom direcionamento (o que não aconteceu) talvez hoje fosse outra pessoa.

Sobrava eu e o Zé Renato, que éramos mais prolixos e até escrevemos algumas coisas juntos, ele fazia a letra e eu a música, como no caso de Lucíola, que ele chegou com a letra, revoltado de ter que ler o livro homônimo para uma tarefa da escola, do autor brasileiro José de Alencar.

Lucíola era uma puta
Gostosa pra caralho
Se prostituía
Pra comprar cocaína

Lucíola La La La
Lucíola La La La La La La

Ela não prestava,
Ela não valia nada
Mas fazia a alegria
Da molecada

Era uma música experimental que virou um dos maiores sucessos da banda-sem-sucesso-que-jamais-saiu-do-papel-Mayday. A letra era uma crítica não à personagem, mas intrínseca à obrigação de ter que ler o que não se queria. Pura rebeldia adolescente e sadia.

O nome Mayday foi trazido pelo Zé Renato, que estava assistindo a um desenho, se não me engano do Duck Tales, quando um personagem pedia socorro e gritava mayday. O nome foi bem aceito e eu virei Márcio Mayday, como os Ramones, que recebiam o sobrenome quando entravam para a banda.

A história toda de tocar em uma banda nada tinha a ver com sucesso ou grana. O lance era impressionar as gurias para ver se conseguíamos algumas noites de orgia, muito sexo, coca cola e roquenrol. Molecada de 13, 14 anos, nos anos 80, não tinha acesso a drogas mais pesadas do que a coca cola. E era outro mundo, não nos interessávamos por droga ou sair da realidade, fugir da realidade com algum entorpecente. Isso fazíamos com as loucuras do dia a dia, lendo um livro que nos tirava da realidade, nos transportava para suas páginas; pogando ao som de um punk rock, escutando algumas porradas sonoras, a adrenalina sempre era alta. Era isso que nos dava prazer, sacolejar ouvindo alguma canção pulsante, ler e jogar conversa fora, ficar a toa no muro da rua São Paulo, esquina com a Joaquim Távora, em Santos.

Eu era um maluco, que ficava no meio da rua sacolejando como se dançasse alguma música hipnótica e neurótica. Era super tímido, mas chegava nas gurias com a maior cara de pau. Como tinha essa cara de pau enorme, a galera gostava de andar comigo, em pequeno número, para não assustar as meninas, tanto cara feio junto. Curtia rock, me vestia com camisas de banda compradas em uma loja de discos no Gonzaga, ou então camisas Hering compradas no Peralta, supermercado perto de casa (de todas as casas, porque tinha praticamente um em cada esquina em Santos nos anos 80) sempre lisas, branca, preta ou cinza; usava uma bota bico de aço, pesadíssima, que comprei do China. Durante um tempo aderi ao suspensório (quando virei nacionalista). Este era o meu indumentário.

Sempre fui muito palhaço, daqueles de na 6ª série, no segundo dia de aula, estar de castigo virado para a parede, na diretoria. Mas sempre fui excelente aluno, com as melhores notas da turma, o que me rendeu a alcunha de Márcio Crânio. Durante os 4 anos de ginásio no Dino Bueno, minha mãe ia nas minhas reuniões só para ouvir aborrecimentos da bagunça que eu fazia, mas nunca por causa de notas. Aos 15, no Primo Ferreira e no Colegial, amadureci em uma sala do noturno que eu era tipo o xodó, o cara mais novo, virei o “sete dois”, por ter nascido em 1972 e todos serem da década anterior ao meu nascimento. Não baguncei mais. Era ‘adulto’.

Eu era Office boy, o que me dava liberdade para me vestir do jeito que eu queria, mas não era podrão, usava sempre roupa limpinha e tomava banho todos os dias. Aos 15 anos resolvi colocar um brinco na orelha esquerda. Ao mesmo tempo em que me apaixonei pelas canções de Morrissey e Marr, queria andar como se todos pensassem que tinha uma banda de rock. No inverno usava uma jaqueta de couro estilo Ramones. Essa idéia de andar com roupas que fizessem as pessoas pensarem que eu tinha uma banda de rock veio de uma entrevista que li na (revista) Bizz do Johnny Marr. Olha aí os Smiths permeando novamente a história da minha vida.

Tinha umas gurias que andavam conosco em Santos. Era a Beth e a irmã da Beth – não lembro o nome. Elas nos acompanhavam em algumas das nossas barcas – não as furadas, claro – tipo o baile do Santos aos domingos à noite, discotecagem feita pelo cara da Harry, uma banda de Santos que teve alguma aparição no underground paulista, com boas críticas; nessas noites de domingo no Santos (esse mesmo clube do time de futebol do Neymar) o cara rolava um som underground no meio das bostas da moda, tipo Joy Division, Sex Pistols, Ramones, Smiths.

Nós nos divertíamos; era o nosso momento; a galera pogando no meio, enquanto os demais apenas observavam ou saíam para beber, fumar. No auge do “momento underground” rolava Surfin’ Bird, versão dos Ramones gravada no Rocket to Russia, disco de 1977, o mais famoso da banda de todos os tempos. Também rolava Toy Dolls “a música da Madonna”. Era o ápice da loucura. Na conservadora Santos dos anos 80 rolando Olga e seus comparsas de Toy Dolls.

A irmã da Beth curtia Smiths e sempre trocávamos figurinhas. Era quando eu me sentia entendido entre os punks, embora ela não fosse exatamente uma punk, apenas uma garota underground em busca (procura) do seu espaço. Apesar de ser um som underground, Smiths estava muito longe de ser um som sujo e punk, mais para um pop underground inteligente e de qualidade; um rock conhecido hoje como indie. Pensar em ser pop era um crime!

Fui criticado pra caralho pelos punks da BS (Baixada Santista) nessa época por curtir Smiths, e usar brinco. Os caras eram bem conservadores. Eu era um cara que não fugia das minhas raízes de curtir rock nacional, de ir em show do Engenheiros, Capital, Ira, Ultraje, Titãs (apesar que o som agressivo do Cabeça Dinossauro fez muito punk ir aos shows do Titãs naquela época). Curtir a loucura do DeFalla e dos Cascavelletes, TNT.

Eu assumia minhas posições políticas, como assumo hoje, mesmo com a probabilidade de execração pública. E não era diferente naquela época, quando comecei a curtir uma das bandas de heavy metal que surgiram a princípio sem muita mídia ou alarde, uma tal Guns and Roses. Gosto do frizar que fui um dos primeiros em Santos a usar uma camisa da banda, quando ainda era desconhecida do grande público. Mas os punks quase me mataram por isso, embora fossem todos pacifistas. O ‘mataram’ é no sentido figurativo. Onde já se viu andar com os punks com camisa de ‘metal’ e ainda por cima de brinco. Era muita audácia.

É bom contextualizar. Se hoje reclamam da intolerância com os diferentes, tem todo um discurso politicamente correto para a aceitação e criminalização do preconceito contra as minorias, nos anos 1980 isso inexistia. Então a intolerância era alta. Não em Santos, que por ser uma cidade praiana as tribos conseguiam conviver sem se misturar, mas sem conflitos ou brigas. Acontecia de ter shows no Circo Marinho, no Emissário Submarino, divisa de Santos e São Vicente e aparecer todas as tribos, que curtiam suas bandas pacificamente e depois partiam para o boteco, claro que tudo separadamente, sem se misturar. Ninguém se misturava, mas todos conseguiam conviver sem violência, bem diferente de São Paulo.

Mesmo sem violência, cabeludos, carecas e punks nunca se misturavam.

Usar brinco, camisa de ‘metal’, ir a shows de bandas ditas comerciais, era uma afronta que eu levava na boa. Mas as críticas sempre foram duras, embora eu não me importasse, o que fazia perder a força. Na verdade, acho que os caras nem me levavam a sério. Mas o mais difícil deles terem aceito, foi de eu declarar meu voto no Brizola na primeira eleição presidencial após o longo tempo de ditadura, em 1989.

Os punks eram anarquistas, não tinham interesse em voto, pichavam pelas ruas frases libertárias e anarquistas, tinham um comportamento anarquista e liam (pouco) literatura de autores com a mesma ideologia. Pouco se interessaram pelas eleições, a não ser para criticar. Eu tinha 16 anos e tirei meu título para votar, mesmo sem a obrigatoriedade. Eu queria votar, ter essa experiência. Era um momento ímpar, inédita. Estava participando diretamente da história do país. Só por isso já era alvo de críticas por isso. Quando decidi que não votaria nulo, mas no Brizola, por ser gaúcho, a revolta foi grande. Votar em alguém porque era gaúcho era o cúmulo da alienação!

A primeira vez que vi uma propagando política me apaixonei pelo Lula. Tinha uns 9 anos e era eleição para governador do estado de São Paulo. Partido dos Trabalhadores. Eu só poderia votar em um partido desses, não que eu fosse trabalhador na época. Mas seria no futuro. E o lema “trabalhador vota em trabalhador” fez todo o sentido para mim. Na primeira oportunidade votaria nele.

Veio a primeira eleição e fiquei em dúvida e meu gauchismo falou mais alto; porém, no segundo turno votei no Lula. Eram os dois com maiores índices de rejeição da população manipulada pela Rede Globo (tem coisas que parecem não mudar). E daí para frente foi sempre no Lula e no PT que eu votei. E, embora com todos os arranhões dos últimos anos, continuarei votando assim, desde que em candidatos que me interessem. Jamais votarei em candidatos de partido de direita. Não voto em corrupto e nem em bandido. Seja de que partido for.

Assim que em 1989 votei no Brizola. E sofri as mais duras críticas talvez da minha vida.

Os punks não me levavam a sério. Falo isso hoje, na época não percebia se isso era real. Mas deviam me achar alienado e modista, talvez incoerente. Acontece que sempre segui a minha coerência incoerente. Nunca fui de modismos ou opinião de terceiros. Alguns até me julgavam cabeça dura, teimoso; julgam até hoje. É o preço que se paga por ter personalidade e vontade própria. Por isso nunca escutei rádio, porque era uma forma dos outros controlarem o meu gosto, me dizerem o que deveria gostar. Nunca me prostitui ou me vendi por valores que não acreditavam corretos. Jamais vou puxar o saco no trabalho para levar vantagem e me enojo de quem joga o jogo da política em todo tipo de relacionamento. É importante diferenciar política por vantagens próprias de jogo de cintura, uma característica forte em mim.

A Mayday nunca fez um show. Ensaiamos algumas vezes, mas logo a vida nos separou, cada um seguindo o seu rumo. Durante a Mayday eu tinha um projeto paralelo, que era um som soturno, meio Dark, meio Joy Division, com baixo marcante e pesado: a Frankenstein Boys. Era uma dupla, eu e o Branco. Eu escrevia umas letras mais pesadas no sentido emocional, down, depressivas, reflexões sobre a vida. Eu fiz até uma camisa da banda, com a foto do Frankenstein. Mas a dupla também não vingou. Ensaiávamos com dois violões.

Logo me mudei para Assis e fui estudar Psicologia e minha vida mudou completamente. Conheci a Juliana e queria montar uma banda com ela, estilo guitarra, bateria e teclado, cantando em inglês. Ela fazia Letras e manjava de inglês, o que não era o meu caso. Logo escolheu Espanhol e nunca escrevemos uma letra sequer. Ela não aderiu aos meus planos. As parcas letras que escrevi naquela época, de romance e loucuras da paixão, que era para ela passar para a língua inglesa, nunca vingaram. Sem muito foco, caiu no esquecimento e fora de prioridade.

Ainda voltei para Santos em 1993, quando montei uma banda com o Ronaldo na bateria, o Nair (André) no baixo e um amigo do Ronaldo nos vocais. Eu na guitarra. Mas estava numa fase muito chata, pedante, estava insuportável, estrelinha demais. Não aceitava opinião de ninguém. Até o nome da banda que os caras trouxeram eu não aceitei: Alquimia. Eles baseados nas leituras no Paulo Coelho e eu por preconceito não aceitei. Mudavam alguns acordes das músicas nos ensaios e eu chegava muito fudido e reclamava, porque a música era minha.

O Ronaldo chegou a nos inscrever em um festival de música em Humaitá, periferia de Santos ou de São Vicente, não sei ao certo, mas eu não aceitei. Com razão, pois não estávamos preparados. A galera, mesmo contra a vontade, entendeu que não seria uma boa experiência naquele momento. Meses depois mudei para Londrina e segui minha vida.

O Ronaldo foi viver suas experiências com os Hare Krishna; depois casou com uma militar, logo ele que era o que mais apanhava nas batidas policiais que levávamos nos tempos de punk e zona (lê-se puteiro); virou cozinheiro, teve 1 filho e mora em São Paulo, em uma zona militar. Continua maluco, tive um contato com ele tempos atrás, por telefone, disse que estava black Power, não tinha vida virtual e havia adquirido um celular (nossa fonte de contato) há pouco tempo; depois, como sempre, ele sumiu no mundo e não consigo encontrá-lo mais nos números que tenho dele. Qualquer dia aparece em Santos, fala com o Renato e retoma o contato para depois sumir em seguida; e voltar, e sumir, e voltar e sumir; sempre com o desejo de reencontrar com a galera do Mayday. Coisa que não fazemos a pelo menos uns 20 anos, no mínimo.

Lembro bem como foi que o encontramos da última vez. Em um banco, em São Paulo (aquele mundão) ele encontrou meu irmão Beto. Trocaram telefones e o Beto passou para o Renato, que passou para mim.

O Branco foi estudar engenharia no Santa Cecília. Não foi muito para frente, desistindo alguns anos depois. Trabalhou, se não me engano, na dengue e casou, teve 3 filhos. Meu último contato com ele foi sacana demais. Foi na época do Orkut. Zoava demais com ele, vinha com aquela história fanática do Santos, uma chatice só e junto com o Zé Renato, inventamos uma história de que o Zé Renato era viado, que iria se separar, tinha conhecido um cara e se apaixonado. Isso tudo pelo MSN, em conversas a três. O Zé Renato sairia de casa em breve e moraria com o cara. Em particular, eu e o Zé Renato inventávamos o que falaríamos na conversa em grupo. Tínhamos medo que ele contasse para a mãe do Zé Renato, que é vizinhao do Branco até hoje. Quando ele certo dia encontrou o Zé Renato na rua e este desmentiu, dizendo que eu tinha inventado tudo; ao descobrir a verdade, que estávamos trolando ele, ficou muito puto e não falou mais comigo. Foi agressivo e não aceitou a brincadeira. Não tive mais notícias, me bloqueou no Orkut, no MSN e todo o contato se perdeu. Uma das vezes que fui a Santos combinamos eu, Zé Renato e Branco de sair, mas ele não apareceu.

Às vezes penso que a mulher dele não deixa ele se misturar, como a mãe e o pai dele faziam e o prendiam em casa, proibido de sair. Quando saia no sábado, não podia sair no domingo e vice versa.

O Zé Renato fez jornalismo, casou uma vez, separou, casou de novo e teve um filho. Diferente dele, o guri adora futebol e torce para o Corinthians. Fez mestrado, doutorado e hoje está fazendo pós doc no Espírito Santo. É quem eu tenho contato sempre que vou para Santos e por e-mail. É um vagabundo que leva a vida que todos gostaríamos, estudando e ganhando para isso. Trabalha pouco e aproveita a vida pra caralho. Praticamente um bom vivant, vida fácil.

Eu vivo aqui em Londrina, trabalho pra caralho, tive meus dois guris, que dão um trabalho sem fim; tenho meus projetos de banda (agora tocar bateria) underground, escrever um livro (são 3 sendo encubados – minha biografia, para ser lançada daqui 8 anos, nossa história da rua São Paulo, com o nome Os Meninos da rua São Paulo, parodiando o famoso livro de Molnár Os Meninos da rua Paulo e o terceiro baseado em uma canção da Legião Urbana).

O tio Luiz, na última vez que o encontrei, em 2011, disse com toda sua sabedoria, que um homem, na vida, deveria ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro. O Victor e o Gui são as minha contribuição não só para a continuidade da espécie, como para a perpetuação dos Silveiras; já plantei algumas árvores na vida, embora não saiba o fim delas; falta o livro, que persigo desde os 12 anos de idade, quando comecei a ler compulsivamente, por influência do meu irmão Rogério, um leitor assíduo, que ao vê-lo com um livro nas mãos, associava a algo gostoso e prazeroso.


Antes de partir para o outro lado da vida, espero finalizar ao menos um dos 3 livros que tenho em mente. E encontrar meu pai, meu tio e as pessoas que já se foram, com um exemplar para entregá-los e terem uns bons momentos de leitura.

sábado, 3 de maio de 2014

A LOUCURA NOSSA DE CADA DIA

Muro pichado ao lado do Sesc Cacupé, em Cacupé - Floripa

“Dizem que sou louco por pensar assim
Se eu sou muito louco por eu ser feliz
Mas louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz”

Quando Crhistophe Dejours, médico e psicanalista francês, se deparou no início de seus estudos que culminaram na teoria da Psicopatologia do Trabalho, com trabalhadores sãos e normais, se assustou, pois tudo o que havia visto na teoria e pela forma como as fábricas e empresas se organizavam, deveria encontrar trabalhadores a beira da insanidade. Para ele, essa surpresa foi instigante e o fez buscar entender o que ocorria que as pessoas não enlouqueciam diante de uma organização do trabalho dúbia, com discursos que se chocavam, de liberdade e criatividade e ao mesmo tempo controlando os trabalhadores, mesmo que de forma sutil. Como todos sabemos, esse discurso da autonomia não deixa de ser (com o perdão da expressão chula) uma balela.

As relações de trabalho evoluíram muito ao longo das últimas décadas. Com o advento e o desenvolvimento da tecnologia, as empresas passaram a produzir com a mesma qualidade e com a mesma velocidade; claro que o knowhow sempre contou e continua interferindo na qualidade, mas as empresas passaram a ter o mesmo nível de produção; inovação, a palavra de ordem; diferencial; essa característica das empresas do final do século passado fez o foco de voltar com todas as atenções para a gestão de pessoas, que passou a ser um diferencial. Afinal, quem é que faz a produção? As máquinas são operadas por quem?

A organização do trabalho engessada, controladora, não era mais viável. As empresas modernas, de olho em maior produtividade e lucro, perceberam que o conhecimento que o trabalhador tinha sobre a produção (o saber operário) deveria ser absorvido; maior liberdade e conseqüentemente possibilidade de desenvolver a criatividade era mais do que importante para que as empresas conseguissem se manter no mercado, cada vez mais competitivo. E assim surgiu o discurso da Era do Conhecimento, estar em constante aprendizagem. Os certificados de qualidade também influenciaram nessa corrida pela busca do conhecimento.

Mas ainda assim o controle sobre o trabalho através do horário, dos registros de ponto, da cobrança de metas, ainda se fazia necessário. E a forma como as empresas desenvolveram esse controle foi mais perverso ao trabalhador: os controles psicológicos com discursos e a apreensão da subjetividade. O feitiço das organizações, a empresa como uma família, a ilusão de liberdade e criatividade, estratégia para controlar psicologicamente o trabalhador. O indivíduo preso na armadilha estratégica. Só gostaria que me mostrassem qual família que na crise manda embora seus membros. Se bem que com a doença social em que nossa sociedade está inserida, pai mata filho e filho mata pai. Mas isso apenas no auge da enfermidade psíquica. Em situações normais, a família se une para superar as dificuldades, ao contrário das empresas, que não se furtam de cortar pessoas para sobreviver.

Diante disso é que Dejours acreditava que a loucura seria o mais normal de encontrar dentro das empresas em que foi estudar as relações trabalhistas. Investigando mais afundo, percebeu que os trabalhadores não adoeciam pelo motivo simples de que lançavam mão de mecanismos de defesa os quais nomeou de Estratégias Defensivas. Essas estratégias defensivas é que possibilitavam que o trabalhador mantivesse o equilíbrio psíquico. Embora evitem o adoecimento por completo, as estratégias defensivas não evitavam o sofrimento psíquico.

Dejours e outros autores descreveram como as principais estratégias defensivas que os trabalhadores apresentavam eram a negação, o conformismo, o individualismo, a agressividade e a passividade, dentre tantas outras formas para os trabalhadores evitarem o sofrimento. Através de tais estratégias o indivíduo busca modificar e transformar a realidade que o faz sofrer, minimizando a percepção dessa realidade. Diferentemente dos mecanismos de defesa descritos pela teoria freudiana e pela Psicanálise, que geralmente são individuais, as estratégias defensivas para minimizar o sofrimento nas organizações são geralmente coletivas.

Se as empresas são fonte de adoecimento, o que dirá de nossa sociedade? Nossa organização social, que apresentam valores totalmente díspares em relação ao indivíduo e suas relações sociais, em que o discurso é um, mas o que se faz é completamente diferente, de um cinismo constrangedor, uma sociedade que os valores se inverteram e as pessoas não têm vergonha de dizer que o que importa são as conquistas materiais, uma sociedade propícia para a loucura psíquica.

O normal é a loucura, não a normalidade. Não seria por isso que as pessoas buscam a fuga (uma estratégia defensiva apresentada por Dejours dentro das organizações) da dura e triste realidade através do uso de drogas, através do conformismo, da passividade, da agressividade, principalmente?

Esse é um tema profundo demais para algumas linhas; é necessário maior aprofundamento teórico para não ficar na superficialidade dos achismos e na periferia do conhecimento desenvolvido pelas ciências humanas.

O que se espera é o adoecimento dos membros de uma sociedade pautada em valores materiais, como a nossa. Porém, antes de tudo, desaprendemos a lidar com algumas das nossas emoções que nos tornam humanos na essência; a tristeza, a angústia e principalmente a frustração. E o que nos fez nos afastar do nosso lado humano? O consumismo. Sim, o consumismo e a descartabilidade que veio em seu bojo.

Só é possível comprar algo quando outro algo não presta, não tem mais serventia. E a primeira forma que a sociedade ultracapitalista que vivemos hoje criou foi o conceito de descartabilidade.

Em seguida (em conjunto com a descartabilidade) a idéia de superficialidade, disseminada sutilmente e que se instalou em diversas instâncias, inclusive (e principalmente) nos relacionamentos. Não se apegar às coisas é uma forma de conseguir descartá-las com maior facilidade, sem maior envolvimento emocional.

Depois veio a necessidade de se ter aquilo que não se precisa, o que está em voga atualmente e que tão bem caiu com o desenvolvimento do marketing. O que não é o marketing senão desenvolver nas pessoas o desejo de ter aquilo que não quer ter? Exemplos, temos de monte. E se tu não entras nessa onda, és um retrógrado, não gostas do avanço da tecnologia, é contra o progresso. Quem pensa como eu, que demorou anos para ter um celular, que até hoje tem um celular que faz ligação, toca um mp3 e no máximo tira umas ‘fotinhas’ aqui e ali, que não tem o tal do android, sabe que isso basta, não é necessário mais nada, entende bem do que estou falando.

A superficialidade da pós modernidade torna tudo mais fácil para ser descartado, desde aquele computador que te serve perfeitamente, mas pelo avanço tecnológico está obsoleto, até uma pessoa cujo relacionamento é abalado por um pequeno conflito e parece não servir mais e então é pé na bunda, sem chances de elaborar aquele conflito momentâneo. É mais fácil partir para outro do que investir no antigo. Mas o que se esquece é que isso é a vida, um emaranhado de conflitos para serem elaborados; e por mais que busque outros relacionamentos todos chegarão na fase do conflito, num círculo vicioso. Até que a falta de paciência de entender o outro é vencida pela impaciência de ter que iniciar novos relacionamentos do zero, de tempos em tempos.

A descartabilidade trás outro problema, desta feita para o meio ambiente: como acondicionar tamanho lixo produzido? Antigamente tudo era para a vida toda, o emprego, a casa, o carro, a esposa, a família. Hoje é “que seja eterno enquanto dure”, “... o prá sempre, sempre acaba".

Seguindo a lógica dejouriana, todos deveríamos estar ensandecidos, rasgando notas de cem por aí. Mas acontece exatamente o contrário, alguns enlouquecem e ultrapassam a tênue linha que separa a sanidade da loucura por completo. Como nas empresas, as pessoas conseguem amenizar o sofrimento e manter o equilíbrio psíquico. É claro que utilizamos dos mecanismos de defesa que Freud tão bem descreveu no início do século passado, quando se tornou o pai da Psicanálise. Os mecanismos de defesa descritos por Freud servem para amenizar o sofrimento, manter-nos dentro da normalidade aparente. Cito os mais conhecidos e fáceis de entender: sublimação, negação, projeção, introjeção, formação reativa.  

Percebe-se que atualmente estamos cada vez mais próximo ao limítrofe entre a loucura e a lucidez. Por isso vemos as maiores barbáries na televisão e nas ruas. Muitas vezes nem nos damos conta de quão horripilante são essas situações. É a banalização. É algo tão quotidiano que já não nos surpreendemos tanto com a barbárie. A banalização da barbárie.

Viver no meio da barbárie sem se revoltar é característica de uma sociedade doente. Afinal, quem são os loucos? Os loucos somos nós, normais! Qualquer outro enlouqueceria em se deparar com a nossa realidade.

Não há estrutura psíquica que aguente meu caro, não há!