sábado, 3 de maio de 2014

A LOUCURA NOSSA DE CADA DIA

Muro pichado ao lado do Sesc Cacupé, em Cacupé - Floripa

“Dizem que sou louco por pensar assim
Se eu sou muito louco por eu ser feliz
Mas louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz”

Quando Crhistophe Dejours, médico e psicanalista francês, se deparou no início de seus estudos que culminaram na teoria da Psicopatologia do Trabalho, com trabalhadores sãos e normais, se assustou, pois tudo o que havia visto na teoria e pela forma como as fábricas e empresas se organizavam, deveria encontrar trabalhadores a beira da insanidade. Para ele, essa surpresa foi instigante e o fez buscar entender o que ocorria que as pessoas não enlouqueciam diante de uma organização do trabalho dúbia, com discursos que se chocavam, de liberdade e criatividade e ao mesmo tempo controlando os trabalhadores, mesmo que de forma sutil. Como todos sabemos, esse discurso da autonomia não deixa de ser (com o perdão da expressão chula) uma balela.

As relações de trabalho evoluíram muito ao longo das últimas décadas. Com o advento e o desenvolvimento da tecnologia, as empresas passaram a produzir com a mesma qualidade e com a mesma velocidade; claro que o knowhow sempre contou e continua interferindo na qualidade, mas as empresas passaram a ter o mesmo nível de produção; inovação, a palavra de ordem; diferencial; essa característica das empresas do final do século passado fez o foco de voltar com todas as atenções para a gestão de pessoas, que passou a ser um diferencial. Afinal, quem é que faz a produção? As máquinas são operadas por quem?

A organização do trabalho engessada, controladora, não era mais viável. As empresas modernas, de olho em maior produtividade e lucro, perceberam que o conhecimento que o trabalhador tinha sobre a produção (o saber operário) deveria ser absorvido; maior liberdade e conseqüentemente possibilidade de desenvolver a criatividade era mais do que importante para que as empresas conseguissem se manter no mercado, cada vez mais competitivo. E assim surgiu o discurso da Era do Conhecimento, estar em constante aprendizagem. Os certificados de qualidade também influenciaram nessa corrida pela busca do conhecimento.

Mas ainda assim o controle sobre o trabalho através do horário, dos registros de ponto, da cobrança de metas, ainda se fazia necessário. E a forma como as empresas desenvolveram esse controle foi mais perverso ao trabalhador: os controles psicológicos com discursos e a apreensão da subjetividade. O feitiço das organizações, a empresa como uma família, a ilusão de liberdade e criatividade, estratégia para controlar psicologicamente o trabalhador. O indivíduo preso na armadilha estratégica. Só gostaria que me mostrassem qual família que na crise manda embora seus membros. Se bem que com a doença social em que nossa sociedade está inserida, pai mata filho e filho mata pai. Mas isso apenas no auge da enfermidade psíquica. Em situações normais, a família se une para superar as dificuldades, ao contrário das empresas, que não se furtam de cortar pessoas para sobreviver.

Diante disso é que Dejours acreditava que a loucura seria o mais normal de encontrar dentro das empresas em que foi estudar as relações trabalhistas. Investigando mais afundo, percebeu que os trabalhadores não adoeciam pelo motivo simples de que lançavam mão de mecanismos de defesa os quais nomeou de Estratégias Defensivas. Essas estratégias defensivas é que possibilitavam que o trabalhador mantivesse o equilíbrio psíquico. Embora evitem o adoecimento por completo, as estratégias defensivas não evitavam o sofrimento psíquico.

Dejours e outros autores descreveram como as principais estratégias defensivas que os trabalhadores apresentavam eram a negação, o conformismo, o individualismo, a agressividade e a passividade, dentre tantas outras formas para os trabalhadores evitarem o sofrimento. Através de tais estratégias o indivíduo busca modificar e transformar a realidade que o faz sofrer, minimizando a percepção dessa realidade. Diferentemente dos mecanismos de defesa descritos pela teoria freudiana e pela Psicanálise, que geralmente são individuais, as estratégias defensivas para minimizar o sofrimento nas organizações são geralmente coletivas.

Se as empresas são fonte de adoecimento, o que dirá de nossa sociedade? Nossa organização social, que apresentam valores totalmente díspares em relação ao indivíduo e suas relações sociais, em que o discurso é um, mas o que se faz é completamente diferente, de um cinismo constrangedor, uma sociedade que os valores se inverteram e as pessoas não têm vergonha de dizer que o que importa são as conquistas materiais, uma sociedade propícia para a loucura psíquica.

O normal é a loucura, não a normalidade. Não seria por isso que as pessoas buscam a fuga (uma estratégia defensiva apresentada por Dejours dentro das organizações) da dura e triste realidade através do uso de drogas, através do conformismo, da passividade, da agressividade, principalmente?

Esse é um tema profundo demais para algumas linhas; é necessário maior aprofundamento teórico para não ficar na superficialidade dos achismos e na periferia do conhecimento desenvolvido pelas ciências humanas.

O que se espera é o adoecimento dos membros de uma sociedade pautada em valores materiais, como a nossa. Porém, antes de tudo, desaprendemos a lidar com algumas das nossas emoções que nos tornam humanos na essência; a tristeza, a angústia e principalmente a frustração. E o que nos fez nos afastar do nosso lado humano? O consumismo. Sim, o consumismo e a descartabilidade que veio em seu bojo.

Só é possível comprar algo quando outro algo não presta, não tem mais serventia. E a primeira forma que a sociedade ultracapitalista que vivemos hoje criou foi o conceito de descartabilidade.

Em seguida (em conjunto com a descartabilidade) a idéia de superficialidade, disseminada sutilmente e que se instalou em diversas instâncias, inclusive (e principalmente) nos relacionamentos. Não se apegar às coisas é uma forma de conseguir descartá-las com maior facilidade, sem maior envolvimento emocional.

Depois veio a necessidade de se ter aquilo que não se precisa, o que está em voga atualmente e que tão bem caiu com o desenvolvimento do marketing. O que não é o marketing senão desenvolver nas pessoas o desejo de ter aquilo que não quer ter? Exemplos, temos de monte. E se tu não entras nessa onda, és um retrógrado, não gostas do avanço da tecnologia, é contra o progresso. Quem pensa como eu, que demorou anos para ter um celular, que até hoje tem um celular que faz ligação, toca um mp3 e no máximo tira umas ‘fotinhas’ aqui e ali, que não tem o tal do android, sabe que isso basta, não é necessário mais nada, entende bem do que estou falando.

A superficialidade da pós modernidade torna tudo mais fácil para ser descartado, desde aquele computador que te serve perfeitamente, mas pelo avanço tecnológico está obsoleto, até uma pessoa cujo relacionamento é abalado por um pequeno conflito e parece não servir mais e então é pé na bunda, sem chances de elaborar aquele conflito momentâneo. É mais fácil partir para outro do que investir no antigo. Mas o que se esquece é que isso é a vida, um emaranhado de conflitos para serem elaborados; e por mais que busque outros relacionamentos todos chegarão na fase do conflito, num círculo vicioso. Até que a falta de paciência de entender o outro é vencida pela impaciência de ter que iniciar novos relacionamentos do zero, de tempos em tempos.

A descartabilidade trás outro problema, desta feita para o meio ambiente: como acondicionar tamanho lixo produzido? Antigamente tudo era para a vida toda, o emprego, a casa, o carro, a esposa, a família. Hoje é “que seja eterno enquanto dure”, “... o prá sempre, sempre acaba".

Seguindo a lógica dejouriana, todos deveríamos estar ensandecidos, rasgando notas de cem por aí. Mas acontece exatamente o contrário, alguns enlouquecem e ultrapassam a tênue linha que separa a sanidade da loucura por completo. Como nas empresas, as pessoas conseguem amenizar o sofrimento e manter o equilíbrio psíquico. É claro que utilizamos dos mecanismos de defesa que Freud tão bem descreveu no início do século passado, quando se tornou o pai da Psicanálise. Os mecanismos de defesa descritos por Freud servem para amenizar o sofrimento, manter-nos dentro da normalidade aparente. Cito os mais conhecidos e fáceis de entender: sublimação, negação, projeção, introjeção, formação reativa.  

Percebe-se que atualmente estamos cada vez mais próximo ao limítrofe entre a loucura e a lucidez. Por isso vemos as maiores barbáries na televisão e nas ruas. Muitas vezes nem nos damos conta de quão horripilante são essas situações. É a banalização. É algo tão quotidiano que já não nos surpreendemos tanto com a barbárie. A banalização da barbárie.

Viver no meio da barbárie sem se revoltar é característica de uma sociedade doente. Afinal, quem são os loucos? Os loucos somos nós, normais! Qualquer outro enlouqueceria em se deparar com a nossa realidade.

Não há estrutura psíquica que aguente meu caro, não há!

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