sábado, 24 de maio de 2014

QUARENTENÁRIO – O MEU PRIMEIRO DIA NA ESCOLA

“Ainda me lembro aos três anos de idade
O meu primeiro contato com as grades
O meu primeiro dia na escola
Como eu senti vontade de ir embora...”

Em 1978 comecei a ir para a escola. Era o Jardim de Infância, no Grupo Escolar Ceará, ou simplesmente Ceará. Anos mais tarde, achava cômico e tinha uma certa vergonha em falar que havia estudado no ‘Ceará’; um certo preconceito contra os nordestinos. Achava que os outros pensariam que eu era do Ceará, porque eu tinha um sotaque diferente em Santos (sotaque carregado de alguém recém chegado de Porto Alegre) e havia um preconceito grande contra os ‘baianos’ (todos os nordestinos são chamados de baianos em Santos, de forma pejorativa).

Fachada atual do Ceará e já com nome mais moderno
Pouco lembro dos tempos do Ceará. Ainda mais porque perto do final do ano, não sei exatamente em que período, todos em casa pegaram hepatite. Menos o Beto. Aliás, o Beto nunca ficou doente. Pelo menos não durante o tempo que morava conosco, nunca vi o Beto com qualquer problema de saúde. Depois que sai de casa aos 18 anos, não soube de qualquer doença dele. Apesar que, na realidade, ele saiu antes de casa, mas morava em São Bernardo e sempre descia para Santos, comportamento que matem até hoje, perturbando e enchendo o saco da mãe. E quando não vai ele, vão os filhos. Os rituais passados de geração em geração.

No caso da hepatite, minha mãe descobriu que algo estava errado quando o Rogério, que amava bater uma bolinha na calçada do outro lado da rua, em frente de casa (calçada da casa do Alexandre), que era mais larga que a calçada do nosso lado, com os amigos e de repente, do nada, ficara estranhamente quieto em um canto da casa, sem vontade de nada; também estranhou o carnívoro não comer bife, o que sempre foi sua preferência: bife com qualquer coisa. Levou ao médico e logo percebeu o que acontecia.

E daí fomos nós todos, um a um, também ficando doente. Porém, todos se restabeleceram rapidamente. Eu demorei um pouco mais. Não lembro quanto tempo, porque na infância tudo parece ser maior do que é. E o tempo não é exatamente ‘exato’ como é agora. Era mais demorado. Um minuto demorava bem mais para passar do que hoje. A semana então, demorava meses para passar; natal e ano novo eram muito demorados, talvez uns 2, 3 anos para chegar; uma eternidade!  A noção de tempo era bem diferente.

Lembro que, como eu era muito ‘encapetado’ não parava quieto e desrespeitava as ordens de ficar em repouso e saía para o quintal, jogar bola, fazer minhas estripulias. Por isso demorou mais para sarar do que os demais. Como resultado, não voltei mais para minha sala de aula do Ceará, comandada pela professora Darci. Darci Veríssimo, que guardava um certo parentesco com o Erico, o maior escritor que esse Brasil já viu, ou leu.

Corredor do Ceará, em 2011
Como o Jardim de Infância não teve fim, foi ‘abortado’ antes e como consequencia minhas lembranças daqueles dias, meu primórdio na escola, são pequenas. Achava que o colégio ficava longe de casa, lembro do Castelão, supermercado que ficava na avenida Teresópolis, que eu tinha que atravessar. E já no final dos anos 70, em Porto Alegre, era difícil de atravessar uma avenida daquelas. Tinha que me esforçar para alcançar o botão que fechava a sinaleira e abria para o pedestre. Geralmente pedia ara alguém apertar. Eu devia ser um pirralinho com seis anos... todo mundo é um pirralinho aos 6 anos. Anos mais tarde, já no ginásio, Dino Bueno, a Solange me chamava de ‘Miniatura’, porque além de pequeno era muito magrelinho, franzino. 


Em tempo, a Solange era a inspetora de alunos mais gostosa da estória do Dino Bueno e que nossa memória possa lembrar e que preenchiam todos os nossos sonhos eróticos de pré adolescentes/ adolescentes.

Voltando a Porto Alegre do final de década de 1970 e ao Grupo Escolar Ceará, tinha impressão que atravessava a cidade para chegar em casa. Mas qual nada, anos atrás fiz o percurso e percebi que morava a menos de 500 metros. Andava menos de meia quadra, atravessava a avenida Teresópolis, e mais uma quadra e estava em casa. Bem pertinho assim. Mas como uma formiga no mundão do quintal de uma casa, era eu com 6 anos no bairro de Teresópolis.

Casa que nasci e morei em P. A.: 1073 da Clemente Pinto
Das poucas lembranças que tenho é de um guri, irmão de um amigo do Rogério, meu irmão mais velho, que era da minha sala. Acho que o nome dele era Douglas. E que guri encapetado! Vivia aprontando e eu morria de medo dele. E o que acontecia na saída? Todas as mães e pais buscavam seus filhos na hora, mas minha mãe atrasava... o pior é que a dele também! Resultado: todos iam embora e eu ficava sozinho... com o Douglas! E as brincadeiras dele não eram legais. Não sei dizer ao certo quais eram, porque a memória me trai exatamente nesses pontos (talvez um bloqueio proposital, um mecanismo de defesa); possivelmente aquelas brincadeiras de briguinhas, jogar pedra um no outro, coisas ‘suaves’ desse tipo. Deve ser por isso que resolvi “atravessar a selva que me separava de casa” e comecei a ir embora sozinho.

No início de 1979 fizemos nossa mudança para Santos. Uma merda sair da nossa querida e amada Porto Alegre. Mas o destino nos reservava aquilo, viver e crescer longe de nossa terra natal, longe do IMORTAL TRICOLOR, do Olímpico Monumental e todas as suas glórias. Essa talvez seja minha maior frustração nesta vida.

Chegara então a hora de ir para a escola, em Santos, na primeira série. E é esse o dia que lembro como sendo o que ilustra o que dá nome a esse post.

Nessa época eu morava no 123 da rua Espírito Santo, no apartamento 23, famoso Edifício Nadir, mais conhecido como “Balança”. Se tu chegares em Santos, no bairro Campo Grande, canal 2 e perguntares sobre o Balança, todos saberão te indicar onde fica. É praticamente um monumento do bairro, um cartão postal, uma atração turística.

No começo dos anos 1980, final da década anterior, havia um programa chamado Balança mas não Cai. Era um humorístico da Globo, uma espécie de Zorra Total, provavelmente igual, porque esses programas são todos uma cópia do outro. Como o Edifício Nadir era uma bagunça total, sem dono, sem síndico, sem nada, o Beto e a galera que andava com ele, apelidaram carinhosamente o prédio em que morávamos assim. E o apelido pegou tão bem, que até hoje todos conhecem o prédio. E até hoje carrega essa característica (de bagunça, mausoléu, de mal cuidado mesmo, enfim, de abandono). Dizem que para morar lá é só levar a mudança e pegar o apartamento que estiver vazio, uma espécie de invasão. Nos anos de 1980 era um pouquinho mais organizado. Pouca coisa.

O 123 da Espírito Santo fica há umas 4 quadras da Avenida Ana Costa, onde fica o Dino Bueno. Para ser mais exato, daquele prédio em estilo gótico que abrigava a Escola Municipal de Primeiro Grau Dr. Dino Bueno. Hoje, infelizmente, para os saudosos, o Dino Bueno perdeu sua identidade e fica em um prédio novo, na Carvalho de Mendonça, algumas quadras em direção ao canal 3. E no prédio do Dino Bueno, em construção gótica, que chamávamos de Castelo, provavelmente o era em séculos passados, funciona outra instituição do município hoje em dia.

Prédio do antigo Dino 'Maloca' na atualidade: aparência menos
amedrontadora do que na década de 1980
O Dino Bueno, carinhosamente apelidado por nós, seus alunos, de Dino Maloca ou simplesmente Dino, passou por algumas transformações ao longo daquela década de 1980. E poucos alunos sobreviveram e permaneceram no Dina após essas mudanças, como eu, o Silvio Junior, o português Manoel. Estudávamos na época em que a escola era estadual e quando cheguei na 4ª série a escola foi municipalizada. Todos os alunos foram para o Cleóbulo Amazonas Duarte que ficava (e continua) no canal 3. Mas esses personagens citados permaneceram no Dino Bueno. Foi lá (no Dino) que vivi os melhores (e os piores) dias do meu início de adolescência. E deixou muitas, muitas saudades; assim como algumas lembranças.

No meu primeiro dia na escola fui inseguro, com medo, choroso, apreensivo. Não sabia exatamente o que encontraria. Recém tínhamos chegado de Porto Alegre, não conhecíamos nada da cidade, falávamos diferente, naqueles anos 1980, pouca mobilidade, poucos eram os migrantes. E poucas eram as informações. As distâncias de uma cidade para outra, de um estado para outro eram enormes.  E o gaúcho costumava migrar para o interiorzão, tanto que tem a famosa rota oeste da gauchada, que pega todo o oeste desse país chegando até o norte mais inóspito (o norte que fica a oeste, se é que dá para entender alguma coisa). Mas nós fizemos diferente, fomos para a urbanidade do leste, do litoral. E essa mudança brusca deve mexer com um guri de 7 anos.

Além disso, e até por isso, pela pouca migração entre estados, pelo pouco de gaúcho que tinha em Santos, devíamos ser como ‘et’s’ na vizinhança, com aquele sotaque carregado de portoalegrense, utilizando de um vocabulário totalmente desconhecido pelos caiçaras. Era um mundo tão estranho para nós, migrantes, quanto para aqueles que se relacionavam conosco. Na manhã seguinte a nossa chegada, a mãe vai à padaria comprar pão; imagina a confusão: pede 10 ‘cervejinhas’. O português (em Santos padaria e português são sinônimos) pergunta se queria gelada ou fora do gelo. A mãe achou que estava tirando um sarro dela, ficou sem graça e não sei qual foi o desfecho desse diálogo, mas ela chegou em casa com as 10 ‘cervejinhas’ para nosso café da manhã. E não era cerveja, mas sim o que o santista chama de ‘média’, o famoso pão francês nosso de cada manhã. E estavam bem quentinhas para o nosso desjejum daquele dia!

Provavelmente nossa adaptação foi mais difícil do que seria hoje. Mesmo com meu tio Luiz morando no mesmo prédio, no bloco dos fundos.

Naquele primeiro dia de aula, do 1º ano, eu carregava uma sorte de inseguranças. Sabe Deus quais eram. Mas haviam! E lá fui eu, com a mãe me levando pela mão até aquela escola enigmática. E eu com meus fantasmas internos, indo para aquela construção fantasmagórica.

Ao chegar na porta da sala de aula (engraçado como antes deixavam os pais irem até a porta da sala. Possivelmente eu estava atrasado...) comecei a chorar e dizer que não queria ficar. Uma década e alguns anos depois o Victor teria a mesma reação ao trocar de escolinha. Só se aquietou quando viu um amiguinho da antiga escolinha, o Pedrão, que na época era o Pedrinho, e se sentiu mais seguro. Mas eu não tinha nenhum amiguinho da outra escola, a não ser que, muito improvável, alguém tivesse se bandeado de Porto Alegre para Santos na mesma época e que tinha estudado o Jardim de Infância no Grupo Escolar Ceará em 1978... muita coincidência, que, óbvio, não aconteceu naquele princípio de 1979.

Não queria entrar de jeito nenhum. Comecei a implorar para minha mãe não me deixar na jaula dos leões, não me jogar aos leões. Era assim que eu me sentia, sendo jogado aos animais selvagens, abandonado à própria sorte e sozinho, sem ter como me defender. Deve ter sido um pequeno escândalo, na porta da sala, todos os guris olhando, das suas carteiras, curiosos e talvez impacientes. Ou apenas observando o desfecho, sem pensar em nada. Até que a professora, se não me engano chamada Débora (prometo que antes de postar vou ligar em Santos e perguntar para minha mãe o nome dela exato e também sobre o desfecho das 10 ‘cervejinhas’), que morava na rua Pará, uma quadra da Ana Costa e consequentemente há uma quadra do Dino, numa bela casa, disse que eu poderia ir embora, não tinha importância, mas que eu perderia a estória que ela contaria naquele dia.

Opa! Alguma coisa aconteceu em mim. Não sei o que foi despertado, além da curiosidade. Um estalo! O fato é que aquelas doces palavras da professora me tocaram. E eu fui aos poucos me interessando em ficar. E então, depois de pensar melhor, acabei ficando, para saber qual era essa tal estória que a professora contaria. Desde pequeno sempre gostei de uma boa estória.   

Logicamente que não lembro qual era a estória. Mas eu fiquei. E o Manoel, o português que comentei acima, durante anos tirava sarro de mim, lembrando desse episódio, que ele, aos 7 anos presenciou de sua carteira, de dentro da sala de aula. Como ele morava perto de casa, na Almirante Barroso (a Almirante, como chamávamos, abreviadamente), passava em casa para irmos juntos para a escola.

E assim foi meu primeiro dia na escola. Meio traumático, amedrontador, meio curioso, muito divertido. Principalmente para os que estavam de fora e observaram de camarote o meu choro. Deve ter virado assunto no almoço da família de muitos daqueles pequeninos alunos.

Estranhava o fato de todos chamarem a professora de ‘Tia’. No começo achava que ela era tia de todos os alunos, menos minha. Mas não entendia como alguém podia ter tantos sobrinhos... foi a professora Débora, com sua inteligência e perspicácia, e porque não, sedução, quem me manteve na sala de aula naquele dia; e, sou muito grato a ela por isso (e por tantas outras coisas que me transformaram no que sou hoje), me alfabetizou. Não sei se ainda é viva, mas sempre será especial para mim.

Eu costumava pegar os gibis da Disney dos meus irmãos e ficar olhando as figurinhas, antes de dormir. Certa noite, comecei a juntar as letras e ler as palavras, as frases. Que surpresa, eu começava a dar meus primeiros passos no maravilhoso campo das letras. E todos os dias era a mesma coisa: eu deitava, pegava meu gibizinho com as estórias do Pato Donald e do Tio Patinhas e lia voz alta, daquele jeito devagar e monótono de quem está começando a desbravar as primeiras leituras aquelas divertidas estórias. Lembro do Beto (o irmão mais ranzinza) reclamar que eu lia em voz alta, que o incomodava. Eu dava de ombros e seguia lendo meus gibis.

Ao longo dos anos no primário, que hoje se chama fundamental 1, nunca consegui chamar minha professora de ‘Tia’. Sempre a chamei de professora, apesar de todos a chamarem de maneira diferente. Acredito que isso tenha facilitado em minha adaptação na 5ª série, quando já crescidos, os alunos tentavam não chamar as professoras de ‘Tia’.

De qualquer forma, devo muito à ‘Tia’ Débora, que teve paciência comigo não só no primeiro dia, como nos demais daquele ano de 1979, porque depois que me enturmei virei uma pestinha, mas principalmente por ter me auxiliado nos primeiros passos para as letras.

“... fazia tudo que eles quisessem,
E acreditava em tudo que eles me dissessem,
Me pediram para ter paciência, falhei

Gritaram: cresça e apareça!”

3 comentários:

  1. Oi tudo bem, também vivi essa época no Dino Bueno e Cleóbulo !!!!

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  2. Morei na rua Arnaldo de Carvalho e nessa época 1980 eu tinha 9 anos de idade e estava na 3ª série no Dino Maloca. Eu tinha uma professora que tinha vindo do interior , era e tinha um jeitão de caipirona, ela dava para a gente em um dia da semana educação física, eu e outros meninos tinha que ir de camiseta e short brancos nesses dias.

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  3. bons tempos de Dino Maloca, rsrsrs. Estive em Santos depois de uma invernada no na passagem de ano e vi como mudaram as redondezas do Cleóbulo. A mudança do Dino Bueno para a Arnaldo de Carvalho foi uma sacanagem com nossas memórias... valeu pelo comentário, galera!

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