sábado, 21 de fevereiro de 2015

QUARENTENÁRIO - UM DIA DE CHUVA

Esse é o canal 1, como não tenho foto do 2,
Bernardino de Campos, fica esta mesmo.
Se alguém tiver, me manda aí, please
Voltando do trabalho hoje à tarde, às 18 horas, começou uma chuva forte e eu dirigindo, escutando Morrissey. A canção que começa a tocar é Hold On Your Friend. A chuva forte, as ruas molhadas, os dedilhados da guitarra, a voz inconfundível e incomparável do eterno vocalista dos Smiths me remetem ao início dos anos 1980: 1981... 1980, talvez. A saudade toma conta de mim e uma pontinha de nostalgia vai subindo pela espinha.

Minha lembrança mais remota no momento remonta a um dia de chuva, chegando do Centro da cidade de Santos, canal 2, avenida Bernardino de Campos. Eu, minha mãe e o Renato, meu irmão mais novo. Talvez o Fábio estivesse junto também. Lembro de descer do ônibus, o 17, que faz o percurso oposto ao 10, vem do Centro, desce a Bernardino até a praia, segue até o canal 4 pela avenida da praia, que em Santos muda a cada trecho de nome, entra na avenida do canal 4 e segue até Afonso Penna e depois a Conselheiro Nébias, até chegar ao Centro.

Desde os tempos de Porto Alegre, dia 10 era dia de ir ao Centro, Banco Bradesco, para sacar o dinheiro que o Flamarion depositava para que a mãe administrasse nossa sobrevivência. Pagar aluguel, 
Eu, Beto, Renato (ele não gostava de futebol) Rogério e Fábio,
ainda em Porto Alegre, anos 1970
contas, comida, nossa, o Flamarion devia depositar uma fortuna. Com certeza a Sirlei tinha um orçamento apertado e limitadíssimo para sustentar suas 5 crias. Mas dava conta. Tinha que dar... tempos duros... mas a vida era mais barata e menos consumista. Ah, e menos descartável, bem menos descartável do que é hoje. 

Contar isso para o Victor e para o Gui, eles acham que era a pré pré história, devem imaginar nós saindo das cavernas, com tacape e arco e flecha para caçar. Não ter internet, celular, whatsapp, bah, quequeéissopelamordeDeus! Como vocês viviam? Muito bem, obrigado! Comprar roupa, tênis, uma vez por ano e só usar roupa nova para “sair” (o conceito de sair era ir para algum evento importante), como na época dos nossos avós (o velho Laudelino Ávila Silveira e a dona Julieta Cardoso devem ter vivido isso no começo do século passado) de usar a “roupa boa” para ir à missa.

Ir ao Centro significava passar nas Americanas e comer o famoso cachorro quente, coisa que não existe mais hoje em dia, pois as poucas lojas Americanas de rua que sobraram não têm mais lanchonete. As de shopping, muitas vezes são tão pequenas que não têm espaço para tal. Deviam lançar uma lanchonete Americanas na praça de alimentação dos shoppings. E a lanchonete das Americanas deixa saudades. Muitas saudades. Dos lanches, do ambiente que me lembra a infância e que me traz à tona tantas coisas. Como podem acabar com aquilo que fez parte da nossa vida? Isso deve ser o que melhor representa o conceito de morte, morrer aos pouquinhos a partir do momento que as coisas da tua vivência deixam de existir.

Um breve parênteses aqui, como será que isso fica na cabeça das pessoas hoje em dia, se tudo morre tão rápido e tudo é tão superficial? A era da superficialidade. Vários filósofos e sociólogos, ou as duas coisas, já discorreram sobre a pós-modernidade, principalmente Bauman, o meu predileto.

Lembro que naquela época eu não gostava de comer a salada do hot dog, então comia apenas o pão com salsicha; e adorava! Quando chegamos em Santos, de mudança definitiva, de mala e cuia, como se diz, o ritual se manteve, Centro, Banco Bradesco, Americanas, cachorro quente, sem molho, por favor! Que idiota, a parte mais gostosa do sanduba, cada mania, cada mania, tsc, tsc, tsc. E todo dia 10 era a mesma coisa. Passava mês e ano e lá estávamos nós, naquele local e sempre comendo a mesma coisa, Lojas Americanas e cachorro quente sem molho, seco pra caramba, mas era assim que eu gostava. Depois que cresci um pouco é que comecei a gostar das coisas mais molhadas.

Era engraçado (não vejo nada de graça nisso, diria o Guilherme e eu retrucaria que é apenas uma expressão antiga que eu carrego com o tempo) que em todas as cidades que eu passava era sempre igual, sempre tinha uma Lojas Brasileiras (vulgo Lobras) ao lado da Lojas Americanas. Mas nós, programados para receber os lixos dos U.S.A. sempre preferimos as Americanas. Acho que o nome,
Vovó Sirlei, Sirla, Sirloka e os netos mais velhos, Gui e Vitor
em sua ultima passagem por Londrina
inconscientemente remetia a coisas boas, porque nós tupiniquins no auge de nossa baixo estima e complexo de inferioridade coletivos, vivíamos reclamando que as coisas no  Brasil não funcionavam e não prestavam. Bastava vir de fora, ser importado (às vezes da Zona Franca de Manaus) para ser bom.     
Naquela época as coisas demoravam para acontecer. Ano novo, natal, férias escolares, aniversário, o tempo era outro. Talvez nossa sensação de tempo era outra. Embora as mudanças climáticas e as alterações produzidas pela mão do homem tenham feito com que a Terra desse a volta em si mesma mais rápido, o que fez com que o dia ficasse mais curto do que as 24 horas que estamos habituados (li isso em um livro de RH faz tempo. Sabia que essa bosta serviria para alguma coisa em um dia), não foi tanto assim para que a sensação do tempo fosse tão diferente do que de décadas atrás. Mas hoje parece que as coisas acontecem em uma velocidade absurda. E logo é natal e logo ano novo de novo e de novo. Vivemos na velocidade da internet, a vida online é que dita a velocidade e estamos sempre correndo, para fazer nada a maioria das vezes, mas sempre correndo. Meu amigo Carluxo dizia que queria chegar logo em casa para ficar mais tempo sem fazer nada. Hoje em dia eu acordo cedo aos finais de semana e feriado para ficar mais tempo sem fazer nada.

Minha lembrança remonta a um dia de chuva, como dizia, em que descemos do 17. Lembro que estava com a mãe eu e o Renato, o Fábio não lembro se estava conosco. Mas como éramos os mais novos, geralmente andávamos os três com a mãe, que como um canguru nos levava para onde ia. Eu com 8, 9 anos, o Renato com 6, 7 e o Fábio, dois anos mais velho que eu, 10, 11. Se bem que nesse dia ele poderia estar no colégio, estudando à tarde.

Eu andava sempre com a mão pendurada no braço da Sirlei. O Renato idem. Aquela mãe era grande e forte, protetora, nos geria além do alimento para o corpo, o espírito, a alma e o carinho. Nunca foi daquelas mães castradoras, éramos bem livres, exceto quando saía para trabalhar e não nos deixava descer, pois era e é, acima de tudo, cautelosa. O receio era de que na sua ausência as coisas poderiam sair do controle. Hoje, como pai, sei bem o que ela sentia.

Enquanto a Sirloka era extremamente cautelosa, o pai, o Flamarion (Favo), era um maluco que vivia a vida louca. Mulheres, putarias e tudo o mais e nunca se contentava em um lugar, pulava de casa, cidade e estado com uma facilidade. Deve ser o sangue nômade das tribos do Oriente Médio, nossos ancestrais que corria nas veias. Seu irmão Luiz era a mesma coisa. Eu mesmo já morei em tantos lugares que penso que sou um cidadão do mundo, pois não tenho sotaque de porra nenhuma, de gaúcho nada, de Santos menos ainda e de paranaense, bah, nada. Nem de interior paulista ou do litoral paranaense. Sou um ser sem sotaque, apatriado, descendente de tribos nômades do Oriente Médio.

Voltando ao que realmente interessa e que não é cagar, como diz o Walter Elias, amigo do Victor, numa dessas vezes em que foi trabalhar, Rogério e Beto provavelmente estavam em seus primeiros empregos ou na praia, jogando bola, a mãe deixou o Fábio, que era o mais velho de nós três, cuidando de nós dois e de si próprio. O Fábio sempre foi politicamente correto, seguia a risca as regras e ordens estipuladas. E não nos deixava descer. Nessa época morávamos no 123 da Espírito Santo, no apartamento 23. E podia implorar que o Fábio não nos  deixava descer. Da janela do primeiro andar, onde ficava o apartamento 23, podíamos ver todos nossos amigos brincando e nos chamando para brincar.

O Renato era tranqüilo. Se pudesse descer, tudo bem, seria legal, mas se não pudesse, para ele tanto fazia. Sempre foi um cara tranqüilo, boa praça, evitava criar problemas para si e para os outros. Sempre foi assim. E tinha eu. Atentado! O capeta no corpo, inquieto e à margem das regras. Já era punk aos 8 anos. Contestador por natureza, não aceitava aquela prisão imposta sem motivo. Victor e Gui tiveram a quem puxar, pois vivem questionando as regras.

No fundo, todos queriam descer, mas não tinha como fazer isso com o Fábio no comando e com as ordens expressas da mãe para não descermos. Foi quando me deu aqueles 10 segundos de bobeira... calma, não pulei do primeiro andar para me juntar aos amigos e jogar bola no prédio. Não pulei porque me machucaria, com certeza (a cautela da Sirla), mas tinha algo que podia fazer e não prejudicaria minha estrutura física: jogar alguma coisa que precisássemos descer para buscar (o aventureiro amalucado Favo pulsando em minhas veias). E daí, já era, pois não teria como voltar para a gaiola. Eu era o verdadeiro matador de passarinhos (ecoa na minha mente o refrão da canção que abre o programa do Rogério Skylab – matador de passarinho, matador de passarinho). Resolvi jogar os travesseiros. O Fábio, revoltado, me deu uns petelecos, mas descemos os três e os dois, espertos, resolveram também ficar, pois qualquer coisa que acontecesse, tinham a quem culpar. E assim foi a minha vida inteira, eu sendo a ovelha negra da família e os dois, quando possível, se aproveitando das coisas que eu aprontava. Hum, safadeeenhos!

Foi numa dessas vezes que descemos sem autorização da mãe e que devo ter inventado alguma para poder brincar, mesmo com a proibição dada, que o Renato sofreu um acidente feio e que me marcou por muito tempo, acho que até hoje, e se fizer uma análise mais profunda, para o resto dos meus dias, com remorso. Deve ser uma das fontes de alguma das minhas pirações, das minhas neuroses. A tal esquizofrenia aclumbática maluco, diagnosticada por Hermes e Renato.

Como já era de se esperar, proibidos de descer, devo ter insistido ao extremo e aprontado alguma para nos obrigar poder brincar. Chega até a ser cruel não deixar crianças brincarem, quando estão de férias. Ao menos naqueles tempos, inocentes tempos. Porque hoje em dia está bem diferente. O perigo (pode) mora ao lado. Drogas, pedofilia e tantos outros malefícios da pós-modernidade estão ao acesso de nossas crianças, que a cautela e o cuidado nunca são demais. Como resultado, criamos pessoas superprotegidas e que não sabem lidar com a negação e a frustração.

Mas, voltando, como sempre, consegui com minhas pequenas e inocentes tramóias infantis, descer para brincar e os dois, Fábio e Renato, desceram na minha cola. Fomos brincar de ‘malha’, brincadeira idiota daqueles anos, que se tratava de chutar uma bolinha de tênis ou mesmo uma tampinha de garrafa de refrigerante (aquelas de alumínio, pois ainda não existiam as garrafas pet) e se passasse por baixo das pernas de alguém, teria que passar por um corredor polonês.

Porra, aquela pequena circunferência de alumínio passava por baixo das pernas de qualquer merda, caralho. Não tinha como não passar. Era só chegar perto e alguém dar um chute certeiro que passava. Era propicio para desencadear (e descarregar) nossos instintos primitivos.

“Existe profundo no sonho
Uma floresta futurista
Deuses astronautas, em plena nudez
Existe a terra, o fogo, água e o ar
Longe existem chances para o meu amor”

E, numa dessas passou por baixo das pernas do Renato. Eu tive dó, pois era nosso irmãozinho caçula (hoje, o mais alto da família, ainda é o queridinho da família, o caçulinha, o pai da Luizita). Nem bati e com certeza o Fábio também não o fez, quando passou no corredor polonês; mas a galera bateu e um babaca, o Jonas (Jôniiii) além de bater pôs o pé de forma que ele tropeçasse e bateu nas costas dele, com tanta força que o empurrou. Resultado: bateu a cabeça na quina do pilar, fez um corte grande e muito sangue jorrando; e corre daqui para lá, nós desesperados, eu chorando com lágrimas de remorso, copiosamente, em soluços. E a mãe trabalhando, sem saber de nada. Informações cada vez mais contraditórias, desencontrada nos chegavam a todo momento. Plástica na cabeça, ficar careca para o resto da vida e coisas piores. Foi uma das maiores tragédias da minha infância. E eu atazanado, andava para lá e para cá, remoendo no meu remorso, perdido nas minhas culpas. Com 7, 8 anos de idade. Não é crueldade demais? Na inocência da infância, sendo crucificado por um ato tolo de busca da liberdade. Como é cruel nossa sociedade!

Logo à noite ele estava de volta para casa, depois de passar alguns momentos difíceis na Beneficência Portuguesa, um hospital que fica na Bernardino de Campos, perto da Rua São Paulo. E estava bem, graças a Deus!, sendo paparicado por todos, inclusive por mim. Alguns pontos na cabeça, enfaixada para proteger os pontos.

Mas e aquele dia de chuva, do começo da história? Descemos do ônibus, era o 17, sentido bairro – praia, eu segurando o braço da mãe, o Renato idem. O Fábio não lembro se estava junto. Puxando pela memória, nem o Renato devia estar junto, porque naquela época eu estudava no Dino Bueno de manhã e os dois no Cleóbulo Amazonas Duarte, no canal 3, em frente ao clube Atlético, à tarde. Por isso eu deveria estar sozinho com a mãe. Devia ser 1980. Quase certeza de uma memória que não é mais aquelas coisas, já desgastada com o tempo e pouco confiável.

Chuva fina em Santos, daquelas que não param nunca e quando começa é por dias a fio. O dia inteiro chuvoso.  Santos é assim, quando desembesta a chover, parece que nunca mais pára. Por volta de três e meia, um pouco mais, um pouco menos. Descemos do ônibus e esperamos ele passar na nossa frente para atravessarmos. No início dos anos 1980 haviam poucos carros nas ruas, o trânsito era menos selvagem. Então começamos a atravessar e eis que aparece um palhaço, empinando a bike, no meio da rua, da avenida Bernardino de Campos, canal 2, se mostrando para a namorada, que vinha a pé, logo atrás, com sua mãe. E o susto que o cara tomou conosco atravessando foi tão grande que chegou a cair da bike, se ralando e se esborrachando no chão. Levantou com a bike, xingando e vociferando palavrões, que encontram eco na Sirlei, que devolveu em dobro os xingamentos, fruto do nervosismo, do susto e do instinto materno em defesa da prole.

Estranho o que um dia de chuva, uma canção, uma memória saudosista podem fazer em uma viagem de apenas 10 minutos, do trabalho até em casa. Me deu saudades da Sirloka, de ouvir a voz dela; saudades do bolinho de chuva que só ela sabe
Luiza, Luizita, Fofolona do tio, com a tia Ju e a tia Terê ao fundo
 fazer, que fica uma delícia, principalmente quando meio cru. Na páscoa vou para Santos para vê-la e a Fofolona Luizita, minha sobrinha querida. E vou pedir para fazer bolinho, como chamávamos essa guloseima.  

Quatro minutos de canção e um turbilhão de lembranças e de emoções. A canção que despertou tudo isso? Hold On To Your Friends. Morrissey e sua poesia romântica e ácida.

Hold on to your friends
Hold on to your friends
Resist - or move on
Be mad, be rash
Smoke and explode
Sell all of your clothes
Just bear in mind :
Oh, there just might come a time
When you need some friends

Devaneios de um dia de chuva. Apenas isso, devaneios de um dia de chuva e um tempo parado no trânsito já caótico de Londrina, a pequena Londres. E um boa música rolando e indo direto para a alma.

P.S.: devaneios ocorridos na quarta feira de cinzas e escrito em seguida, ao chegar em casa, no calor da emoção, terminado no dia seguinte, na permanência na Unopar.

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