segunda-feira, 21 de abril de 2014

QUARENTENÁRIO – O PRIMEIRO ANO DO COMEÇO DE NOSSAS VIDAS III

Por volta de 1988, 1989, até mesmo 1990, ia com muita freqüência para São Paulo, mesmo sendo menor de idade, costumava subir a serra, muitas vezes sem autorização do juizado de menores, que para variar, exigia esse documento expedido pelos pais ou responsáveis pelo menor em um órgão competente, mas que não fiscalizava de forma alguma. E nessas idas para São Paulo, meu porto segura era a casa do meu tio Luiz, que deixou muitas saudades entre nós e que morava na Vila Prudente, na Rua Fabiano Alves.

Numa dessas idas e vindas de Sampa, meu primo Luiz Otávio da Silva Silveira, mais conhecido como Pico, meu grande companheiro de traquinagens na infância me deu uma fita cassete do Smiths. Sabia que eu era superfã da banda, pela ‘fitografia’ que eu carregava e como tinha entre seus pertences a Strangeways,  Here We Come, de lado, porque não escutava, o último disco de estúdio da banda, me deu de presente. Eu já era possuidor do vinil, mas nessas minhas viagens e nas andanças por Santos como Oficce Boy, um dos meus companheiros inseparáveis era o walkman onde podia escutar minhas músicas prediletas nas minhas andanças solitárias e reflexivas. Escrevi muito andando, lendo, olhando para a praia enquanto o busão lotado atravessava toda a orla praiana. Alguns desses escritos nunca saíram da cabeça; outros viraram canções da Mayday; outros foram do papel para o lixo mesmo.

Capa do disco Strangeways, Here We Come

Desde Porto Alegre eu e o Pico éramos companheiros de bagunças. Anos mais tarde, em Santos, morávamos no mesmo prédio e vivíamos aprontando pelo prédio, tipo jogando areia no apartamento do zelador, por exemplo. Ele era terrível e eu entrava na dança. Certa feita nessa mesma Fabiano Alves, em Sampa, tinha uma árvore na frente da casa e em seu cume um formigueiro enorme. Resolvemos que colocaríamos fogo para acabar com ele. Foi o que fizemos. Como ficou muito sujo, lavamos antes que minha tia Noemi chegasse. Ela estranhou que estava tudo limpo, do nosso jeito, de uns guris de 10 anos para limpar um quintal, ou seja, bem mal feito, mas ficou lisonjeada com a ajuda que tínhamos dado. Porém, quando foi buscar o fósforo para fazer comida, descobriu a verdade . Quando meu tio chegou, a sova foi grande no Pico,eu levei uma bronca daquelas, mas com o Pico foi pior, uma surra daquelas.

Essa foi uma das nossas. Lembro dele pedir para a tia fazer pão com “açucras” e manteiga, uma das predileções dele.

Meu walkman era um desses (daqueles) amarelos, bem conhecidos na época, sem marca específica, dos mais baratos, sem a tecnologia de mudar de lado a fita automaticamente, coisa que só foram inventar na década seguinte. E a utilização desse aparelho que tocava fita cassete criou um comportamento diferente em muita gente, como eu, que era ter o disco original e gravar em uma fita virgem para escutar no walkman. Isso quando não encontrava uma promoção e comprava também a fita cassete original. Mas eu preferia o vinil e depois gravava uma fita para escutar no walkman, com uma trilha sonora daquelas.

Essa fita do Smiths se tornou minha companheira por anos a fio. Quando fui para Assis, na primeira das minhas idas e quando fui para valer, de vez, morar, foi escutando essa fita, a noite inteira, termina lado, vira fita, termina fita, coloca de novo e assim por diante, uma viagem de umas 8 horas. Uma fita que dura pouco mais de 30 minutos.

No mural do prédio da Psico eu escrevi uma frase de Last Night I Dreamt That Somebody Loved Me, algo como “a noite passada sonhei que alguém me amava”. Ao menos era isso que eu tinha aprendido com a Bizz Letras Traduzidas.

E nas viagens que resolvia ir durante o dia e via aquele infinito campo verde por toda a Castelo Branco, escutando I Wont Share You, Paint a Vulgare Picture ou Girlfriend in a Coma, pensava em mil histórias e até mesmo em escrever um roteiro para clipe. Esse é um dos exemplos de coisas que nunca saíram da minha cabeça, não no sentido de fixação, mas no sentido de escrever aquilo que pensava, processar meus pensamentos criativos.

Quando numa terça feira de fevereiro de 1991 descobri que tinha passado no vestibular, após comprar o jornal O Estado de São Paulo para d. Elza, na manhã daquele expediente que se tornaria talvez o mais longo da minha vida, não tinha tanta idéia de quanto a minha vida mudaria. Alguém me dissera que a Unesp tinha mensalidade e se isso fosse realidade eu estava frito, porque não teria condições de estudar, sem trabalhar; e meu curso, pelo que constava, era integral. Outras conversas foram se juntando a esta, numa tentativa de me desanimar.

Havia ainda o fato de eu não estar habituado a estudar matérias de humanas, de não gostar, de preferir as ciências exatas, tipo matemática e física. Tinha a preocupação de não me adaptar a esse tipo de conhecimento. Mas logo me apaixonei pela sedutora Psicanálise.

Nas instruções do vestibular informava que eu tinha até o dia seguinte para fazer a matrícula, em Assis, uma cidade que eu nem sabia onde ficava e que até o vestibular eu jamais ouvira falar. O pai da minha namorada foi quem me esclareceu que Assis era perto de Prudente “opa, essa eu já ouvi falar, mas onde fica isso, só Deus sabe!” - era o meu pensamento - o que não me ajudou muito. Mas ele já me frustrou ao dizer que era mais quente que em Santos. Eu fugindo do calor, mas caindo em lugar pior. Era minha sina.

À noite, de jornal em punho (até pouco tempo atrás eu tinha essa página do jornal, que deve ter se perdido em uma dessas tantas mudanças que fiz na vida) fui até a rua São Paulo contar para a galera a novidade. Claro que eles me pegaram de surpresa e me rasparam a cabeça, até o último fio de cabelo, literalmente, passando a navalha na careca. No dia seguinte tinha a viagem marcada para Assis, passando por São Paulo, porque não tinha ônibus direto para lá de Santos. Ao menos eu não sabia.

Raspar a careca me ajudou quando começaram as aulas e a galera queria dar trote. Como não tinha cabelo, não tinha o que cortar, diferente do meu (novo) colega (por onde andas?) André Luis Masiero, que como já tinha crescido algum cabelo, ficou com um belo penteado cheio de furos na cabeça. Lembro que se recusou a cortar o cabelo e durante um tempo parecia uma bola de camurça gasta em alguns gomos.

Chegando na rodoviária do Tietê, tomei um susto; na verdade uma surpresa e um susto: a surpresa foi que teria um ônibus que sairia à zero hora. Isso era bom, porque viajaria a noite inteira e não teria que ficar enrolando em algum lugar até dar a hora, passar noite em algum hotel, o que seria uma economia; o susto foi o preço da passagem. Estava com uma grana no bolso. Nessa época não era comum ter dinheiro no banco, como hoje. E a passagem era mais da metade que eu tinha, então teria que voltar para Santos para pegar mais grana. Não perguntei para ninguém, havia visto o valor no guichê da empresa. A sorte que pus a cabeça para funcionar e resolvi comprar a passagem e depois ir para Santos pegar algum com a d. Sirlei. Foi então que tive uma grata surpresa: aquele valor que tinha visto no guichê era para ônibus leito. Para convencional eu tinha grana de sobra.

Mais aliviado, fui na casa do meu tio, totalmente careca, de boné, contar a novidade, pois telefone naquela época era só para as famílias mais abastadas e carta não chegaria tão rápido quanto eu, de um dia para outro, o que fazia com que meu tio e primos não soubessem que eu havia passado no vestibular. À tardinha, liguei para a Ana e a encotrei no Center Norte, shopping que fica em frente ao Terminal Rodoviário do Tietê. Ficamos até uma certa hora e eu ainda tinha mais um tempão para esperar aquele bendito busão, rumo ao oeste. Lá ia, com meus poucos pertences, carregado de sonhos, medos, dúvidas e, claro, com meu walkman na mochila. Algumas fitas também, que faziam um volume impensado na era da música de arquivo mp3. De qualquer forma, fiz a viagem sem dormir, de ponta a ponta escutando a mesma fita.

Não dormi. Era muita excitação para um guri de 18 anos, sair de casa e começar a viver com as próprias pernas. Uma loucura para alguns, uma aventura para outros. A vida, para mim.

Ao meu lado sentara uma senhora, que era de Assis, que me contou algumas coisas da cidade, claro que só as coisas boas. As coisas ruins, passou pela minha cabeça naquele momento, eu conheceria por conta própria. Não dormi aquela noite assim como não dormiria em qualquer outra noite de viagem Santos-Assis, Assis-Santos; por ansiedade, por insonia, por falta de necessidade, enfim, porque eu pouco dormia ou pouco dormi na adolescência.

Desci do ônibus e conheci a acanhada rodoviária de Assis, na avenida Getúlio Vargas. Como a senhora tinha me orientado, melhor era subir a avenida até o terminal e esperar a primeira ‘circular’ como eles
Rodoviária de Assis - SP
chamavam o busão. Me sentia como Cazuza, sem pódio de chegada ou beijo de namorada. Não tinha carona, não tinha nada. Apenas eu, Deus e The Smiths.

Não ter ninguém me esperando na rodoviária era uma constante das minhas viagens Assis – Santos e vice versa, nessa ponte rodoviária. Até porque, em Santos, nunca avisava que estaria chegando.

Sempre solitário, subi aquela avenida na companhia de Morrissey, Marr, Rourke e Joyce e suas brilhantes canções. Passei em frente a uma rádio, Antena Jovem, vi a freqüência e sintonizei no walkman para ver o que a galera de Assis escutava. Levei um susto! Mais um... estava tocando música sertaneja na rádio FM. Se hoje isso é normal, naqueles tempos era bizarro. Em Santos, jamais isso ocorria. Claro que rádio sempre foi um lixo, mas tocar sertanejo eu desconhecia. Hoje virou a meleca que é, mas naqueles tempos soava no mínimo estranho. Tempos depois, descobriria eu ser o estranho. People are strange, when you're a stranger... voltei logo para o meu mundo smithiano, isolado do resto.

O que aconteceu com as FM’s foi o mesmo que ocorreu com a música e que vem ocorrendo com a nossa sociedade: não se tem mais vergonha de ser brega, não se tem mais vergonha de ser de direita e reacionário, não se tem mais vergonha de defender a ditadura e de dizer que se não fosse esta, seríamos como Cuba; de dizer que a ditadura não torturou ninguém. As pessoas perderam o bom senso. De um lado uma galera radical defendendo o homossexualismo exageradamente, o politicamente correto ao extremo e tals e de outro aqueles que defendem com tal fervor e exagero o contrário. O radicalismo daqueles abriu caminho e justificativa para o desses. E o mundo virou essa merda toda. Sem bom senso e equilíbrio.

Fiz o vestibular em dezembro de 1990; o resultado saiu em fevereiro de 1991, antes do carnaval. E como todo carnaval tem seu fim, aquele foi meu último como morador de Santos. Puxando pela minha (fraca) memória o carnaval de 1991 foi no meio do mês e uma semana antes fui mala e cuia para Assis. 

Antes de partir, passei o carnaval daquele ano com a família da Ana, em um apartamento na Presidente Wilson, que foi um ex-presidente dos EUA, sabe Deus por que foi dado esse nome a uma das partes da longa orla praiana de Santos, de frente para o mar, próximo ao canal 2, avenida Bernardino de Campos, trocando idéias com a tia da Ana, mãe de outras 4 Anas: Ana Carolina, Ana Beatriz (a mais bonita das Anas), Ana Luiza e a Ana mais velha, que não me lembro o nome. E a Luiza era a minha Ana predileta, minha amiga, apesar de sua tenra idade (devia ter uns 12 anos), filosofando horas na praia naqueles quatro dias de carnaval, sobre a vida e suas agruras.

Tinha um primo babaca da Ana, que, claro, jamais gravaria o nome, que fazia Direito em Santos, uma carreira promissora para os santistas de final de século, me vendo careca, disse que chamaria a galera para me dar trote no início das aulas. Eu disse que tinha passado em Psico, ele disse que não tinha importância; na Unesp, em Assis, gargalhei por dentro com o seu desânimo visível. Coisas de família, casos de família, rá rá rá.

A namorada do irmão da Ana veio falar comigo sobre o porquê de eu ter escolhido Psicologia e se não me engano ela mesma era estudante na PUC de São Paulo, eu para não ficar por baixo disse que gostava, tentei falar alguma coisa inteligente, mas falei um monte de asneira que ela deve ter entendido que eu não entendia de porra alguma.

Prédio da Presidente Wilson em Santos
Namorei a Ana por 3 anos. O pai dela era gente fina, a mãe também. As tias dela que moravam em Santos, vizinhas do Branco e que propiciaram meu encontro com ela, também eram bem legais, me deixava com ela nos fundos, mesmo sem a presença dos pais dela; o irmão dela tive pouquíssimo contato, era um playboy filhinho de papai, mas não se metia comigo, apenas cumprimentava e nesses três anos trocamos pouquíssimas palavras, talvez em alguma roda de canastra que aquela família viciada jogava e me dava um banho, que deixava a Ana louca das minhas mancadas de péssimo jogador; a namorada dele idem, fora a conversa citada, nunca conversei. Não tinha afinidades com eles. Não lembro do nome de nenhum deles. Só das Anas.  

A Ana tinha uma prima bonitona, que o Branco se apaixonou e que andou saindo com ela e sua família na mesma época que comecei a namorar. Não acreditava que o Branco estava ‘pegando’ a guria. Mas logo ela deu um chega prá lá nele, dizendo que o que eles tinham era apenas amizade. Uma das grandes mancadas do Branco com ela foi pedir uma dit cuque (a pronúncia do Branco para Diet Cokie). Logo a bonitona arrumou um namorado em Santos, onde foi morar com a avó após os pais se separarem. E virou minha vizinha, ali da Campos Mello.  Não lembro do nome dela e muito menos do cara, que protagonizou uma das situações mais embaraçosas da minha vida, quando saímos os quatro, de casalzinho de amigos e eu não troquei uma palavra com o babaca a noite toda. Um dia encontrei o cara no busão na Afonso Pena, deveria ter saído da casa da namorada, conversando com um amigo sobre o disco do The Doors. Um cara chamar o Doors com o The, soava como alguém sem muita intimidade com a banda. É como ficar chamando Beatles de The Beatles.

Se encontrasse esse pessoal hoje, não saberia de quem se tratava. A Ana ainda cruzei uma vez pela avenida da praia, antes de me formar, mas passei reto, não quis falar com ela, que estava acompanhada com as primas Anas; ela, pelo jeito, pensou como eu e nunca mais nos falamos, nunca mais conversamos. A última vez que conversei com ela foi numa tarde chuvosa de domingo, que voltei para Santos, depois do meu aniversário de 1991, para desmanchar o namoro e pedir que não contasse nada para suas tias. Nunca mais soube qualquer coisa dela.

Minha memória me trai com frequência. Em outro post não lembrei o nome da professora de Desenho do Dino Bueno. O Quinda me lembrou no twitter que é Regina. Regina Helena, para ser mais completo e para ser mais completa a minha humilhação. Disse para ele que é problema da minha memória seletiva. É a seletivIDADE.

Escutar Smiths é minha vida. Me traz a tona todas essas lembranças (viu Quinda, é seletiva mesma essa minha memória, seletividade, kkkk) que ficam latentes no meu inconsciente, prontas para subirem para a consciência com um pequeno empurrão. E Smiths é o empurrão que sempre falta para as lembranças voltarem. De vez em quando essa nostalgia smithiana, de um tempo que foi magnífico mas que eu não tinha a dimensão toda, volta com tudo. E me dá uma louca vontade de escutar por horas a fio a banda mais importante da minha vida. Tipo escutar esse The Troy Tate Tapes. Por isso é importante viver com afinco cada momento da vida. Porque, cara, ela é muito fugaz. E muito fugaz é uma hipérbole!

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