quinta-feira, 31 de agosto de 2017

MEMÓRIAS DO MARUJO MALUCO: EPISÓDIO: PRENDE O COMANDANTE! SOLTA O COMANDANTE!

Pequeno dicionário da língua marinheira:

- Boy – marujo novo
- Sargenteante – responsável pela escala de serviço
- Estar de pau – estar de serviço
- Estar na onça – estar em apuros, dificuldade, sujeito atrapalhado
- CB-EF - Cabo enfermeiro
- Por ordem – Usado por superior hierárquico para dar ênfase a uma ordem, que tem que ser cumprida sem contestação
- Safo – Esperto, sagaz; que sabe contornar as dificuldades
-Sala de Estado – Recepção de qualquer organização militar; a dos navios fica próxima à prancha
Prancha – Acesso ao navio, espécie de escada
Missão a Garcia – Missão que tem que ser cumprida a qualquer preço; quando o superior hierárquico a passa ao subordinado, já considera cumprida; se tiver que morrer, cumpra a missão e depois morra!
- acochado – apadrinhado, protegido
- cafiado – o mesmo que acochado

- Fazer guerra – provocar, provocação, tirar sarro, fazer gozação

Estava o Marujo Maluco servindo no Com5°DN, na Corveta da mulher da Bahia. O campeonato interno daMarinha de futebol suíço estava em sua fase final e a decisão seria entre a Estação Rádio e o ComGrupSul, o Comando do Grupamento Naval do Sul, que era formado pelo pessoal do Grupamento, a Corveta V-15(Imperial Marinheiro) e a Corveta da mulher da Bahia. Esta última era onde o Marujo Maluco servia, juntamente com o CB-EF Fonti, os dois militares que representavam seu navio na seleção do grupamento. E acreditem, o Marujo Maluco era o artilheiro e grande destaque do torneio. As duas equipes haviam derrotado todos os adversários, inclusive os representantes do Corpo de Fuzileiros Navais, cuja rivalidade pode ser comparada a um Palmeiras x Corínthians, Fla-Flu ou a dupla GRE-NAL, que é considerada a maior rivalidade do mundo! Somente para ilustrar, dizem que no Grêmio não é servido tomate na salada porque é vermelho, vejam só.

Os jogos eram abertos ao público militar e familiares, e as torcidas apaixonadas, formadas também por crianças e adolescentes filhos dos militares. E durante o campeonato o Marujo Maluco havia ganho a simpatia dessas crianças e adolescentes, independente qual fosse a torcida a que pertenciam. Fazer o que, os psicólogos e pedagogos dizem que é bom que as crianças tenham seus ídolos, suas referências... mas logo o Marujo Maluco?

Se tinha uma coisa que ele fazia bem mesmo era jogar esse tal de futebol, que eu particularmente não suporto. E o Marujo Maluco era fora do comum, amado e odiado, pois sua maneira nada correta de comemorar seus gols, correndo em direção a torcida adversária, fazendo mesuras, caretas, falava que logo voltaria porque iria fazer mais, que era fácil demais, era ele que estava ali, etc. ...

A criançada adorava, mas o restante da torcida adversária...

O cara era marrento mesmo, e o pior(ou melhor) era que fazia o que prometia. Tais atitudes em um futuro bem próximo fez render um grande problema no campeonato de futsal da Marinha, mas essa é outra história... e, para dizer a verdade, seu talento no futebol sempre o ajudou ou salvou sua pele. Tanto que, ao concluir seu curso de Aprendiz-Marinheirona Escola de Aprendizes-Marinheiros de Santa & Bela Catarina, em Florianópolis, o Marujo Maluco foi aprovado nas disciplinas de Remo e Instrução à Marinharia sem nunca ter entrado em qualquer embarcação a remo e sem saber utilizar o tradicional apito do marinheiro ou até mesmo aprender o mais simples nó da extensa lista de nós de marinheiro! E quando apresentou-se ao navio Corveta da mulher da Bahia mal sabia pra que lado ficava a proa ou a popa e o que seria um cabo de reboque. Coisas do futebol...

Mas, voltando a grande final do futebol suíço do 5° Distrito Naval, tal evento ocorreria em uma sexta-feira no final da tarde e, claro, gerou grande expectativa o duelo das melhores equipes do Distrito.Na Marinha, quando ocorrem competições, internas ou externas, estas últimas com participação das forças federais e/ou auxiliares, são enviadas mensagens para as organizações militares com listas dos nomes dos “atletas” participantes. Natação e atletismo são os principais, mas o futebol... e na Marinha o futebol é serviço, meus caros.

Mas não para o Tenente Tressok...

Marujo Maluco servia na corveta da mulher da Bahia , como já disse antes, e exercia a função de taifeiro dos oficiais, era responsável pelo bar dos oficiais e também prestando serviço na taifa dos sargentos. Taifeiro é uma espécie de garçom.

E era o taifeiro de serviço naquela sexta-feira...

E o Tenente Tressok era o oficial de serviço naquela sexta-feira...

Tenente Tressok era um sujeito alto, muito magro, e sua tez era muito pálida. Parecia ter saído de uma caricatura no mais recôndito canto da mente de algum humorista. Seu grande sonho era ser comandante da Força de Submarinos. Até que era gente boa, mas quando uma idéia empacava...

O Marujo Maluco estava de serviço, muito tranquilo e ansioso, se é que isso é possível. Sabia que jogaria a grande final, ainda mais quando pela manhã o CB-EF Fonti confirmou a mensagem que convocava os dois para a peleja:

- Isso aí, “seu” cabo! Vamos atropelar a Estação Rádio!

A rendição do serviço de segunda à sexta era feita às 12 horas, e nos finais de semana e feriados, às 8 horas. Ao meio-dia o nosso herói assumiu o serviço na taifa e, daquele jeito, esperava sua liberação.
Duas da tarde e nada. Duas e meia. Três da tarde! E lá foi o Marujo Maluco falar com o Tenente Tressok para pegar a liberação para o jogo, marcado para cinco da tarde.

- Nada disso, Maluco! Você está de serviço! Que futebol o que!

- Tenente, já mandaram a mensagem para a liberação, eu e o cabo Fonti! E o senhor sabe muito bem que na Marinha futebol é serviço!

- Serviço? Futebol é brincadeira, isso sim! Serviço é serviço! Então se estivermos em guerra você vai querer ser liberado para jogar futebol? Ah ah ah! Essa é boa!

- Tenente Tressok, não sei quando será que entraremos em guerra, porque com essas nossas banheiras velhas da nossa esquadra, só se matarmos o inimigo de tanto rir!

- Boy, você é muito folgado! Agora é que não vai jogar mesmo!

- Com licença, Tenente! – batendo continência, o Marujo Maluco deu meia-volta e retirou-se do camarote, furioso.

E foi falar com o Tenente Centurione, que era o seu oficial Encarregado do setor.

Tenente Centurione era o mais novo dos oficiais do navio, tanto na idade quanto no posto. Tinha uns dois metros de altura e um pouco menos disso de medida abdominal. Boa praça, gostava de uma gelada e lembrava muito o Tim Maia, o cantor. Centurione ouviu atentamente a argumentação do Marujo Maluco, e foi falar com o Tenente Tressok. Logo voltou com a resposta:

- Maluco, falei com o Tressok e não teve jeito, ele não vai te liberar.

Maluco agradeceu ao Tenente Centurione e saiu do camarote. Resolveu ligar para o Sargento Piccinini, que era o técnico do time do Grupamento Naval do Sul. Ao terminar a ligação, Piccinini imediatamente pegou o jipe no grupamento e foi para a corveta da mulher da Bahia. Assim que chegou ao navio, lá estava o Marujo Maluco na prancha, aguardando. Os dois foram juntos ao camarote do Tenente Centurione.

- Tenente, o Maluco é o artilheiro, sem ele a gente não ganha.

- Que isso, ele é o Zico então?

- Tenente, para o Grupamento Naval do Sul ele É o nosso Zico!

E o Maluco, desanimado, saiu do camarote sem querer ouvir o resto da conversa. Foi para o seu posto de trabalho.

Após cinco minutos, Sargento Piccinini passou pela taifa:

-Maluco, não tem jeito, eles não vão liberar ninguém, nem você e menos ainda o Fonti, que também está de serviço. Não sei como vamos fazer. Tentei de tudo. Tenho que voltar para o grupamento.

Passaram-se dez minutos e o Tenente Centurione chamou o Maluco em seu camarote:

- Boy, vou te mostrar que sou um cara bacana. O negócio é o seguinte: aqui está o dinheiro para abastecer o bar dos oficiais, esse outro é para comprar 4 maços do cigarro do comandante, que você sabe bem qual é, essa documentação você só entrega no banco, e a correspondência deixe nos correios. Se cumprir a missão eu falo com o Tressok pra te liberar. Só depende de você.

Dez minutos faltando para as quatro horas! Que filho da mãe sacana! Nosso herói teria que ser muito safo para tudo isso. Safo não, milagroso! Ia a pé! O banco era perto, e para abastecer o bar bastava um telefonema. Mas o cigarro do comandante, que nem todos os bares da pequena cidade vendiam, era mentolado e sabe lá mais o que, ficava do lado oposto aos correios! Mas nosso bravo Marujo Maluco não hesitou e partiu para a “Missão a Garcia”.

E o milagre aconteceu. Com “asas” nos pés, Maluco cumpriu todas as incumbências com eficiência e cravou a bordo precisamente cinco horas da tarde. Após subir a prancha, foi falar com seu colega marinheiro Ednaldo para trocar de serviço com ele, que era o único disponível no setor, já que Solifax não iria desperdiçar o final de semana livre porque já estava com a Sbórnia marcada e Vicentini ia a um concerto musical sabe-se lá onde.

Mesmo com o Marujo Maluco oferecendo trocar aquele dia de serviço por dois finais de semana, Ednaldo não aceitou. E o Tenente Centurione sorriu de forma irônica quando soube que o Boy cumpriu a missão. E foi falar com o Tenente Tressok. Rapidamente voltou com a resposta:

- É, Maluco, não tem jeito. Tressok não vai te liberar. Deixa pra lá, você joga no próximo campeonato. Afinal, futebol não é tão importante assim.

Mas acontece, meus caros, que para o Comandante Baumgartem o futebol era serviço sim...

Comandante do Grupamento Naval do Sul, o Capitão de Mar-e-Guerra Baumgartem(apelido entre os marujos), cujos comandantes das corvetas eram subordinados a ele, e sua equipe estava na final do campeonato, era apaixonado por futebol. Para vocês terem uma idéia da personalidade de Baumgartem, uma vez os seus navios estavam atracados em Itajaí-SC e, ao tocar o sinal para a bandeira(sinal tocado cinco minutos antes de ser iniciado o cerimonial à bandeira, realizados todos os dias às oito da manhã e ao pôr do sol) e perceber que o horário não estava de acordo com seu relógio de pulso, mandou que seu oficial ligasse imediatamente para a Capitania dos Portos  para que os relógios fossem acertados de acordo com o seu. E que seus navios fizessem o mesmo. Afinal, ele era o oficial mais antigo da área, porque “isso é Marinha, por ordem!”

E também corria o boato na “rádio marujo” que haveria uma aposta entre os oficiais de alto escalão em que se falava em caixas e mais caixas de cerveja..

E o Marujo Maluco já estava em seu posto de trabalho, conformado com a situação, quando, por volta de cinco e meia da tarde, toca o telefone no camarote do comandante, que ficava em frente à taifa dos oficiais. E, imediatamente, um alarme soou na cabeça do nosso marujo! Sorrateiramente, foi até a porta do camarote, mas ouvia somente as respostas de seu comandante:

- Sim, senhor! Não, senhor! Agora mesmo, senhor!

Nosso herói correu para a taifa e, ao sentar-se, ouviu a campanhia do comandante tocando. Atendeu prontamente ao chamado:

- Pronto, comandante!

- Chame o oficial de serviço, por favor!

- Sim, comandante!

Como que adivinhando do que se tratava, praticamente voou do camarote do comandante ao camarote do Tenente Tressok e passou a mensagem:

- Tenente, o comandante quer falar com o senhor! É urgente!

E voltou para a taifa.

Tenente Tressok entrou no camarote do comandante e em dois minutos saiu mais pálido do que já era, coisa que não parecia ser possível. Estava lívido. Parou em frente a taifa e disse:

- Boy, vai jogar!

Marujo Maluco, que era muito gaiato, fez que não era com ele:

- O que?

- Vai jogar! Vai jogar! – repetiu Tressok

- Mas Tenente, estou de serviço!

- Não está mais! – e Tressok virou-se para Ednaldo, o marinheiro que não quis trocar de serviço com o Maluco:

- Ednaldo, você está de serviço a partir de agora! E você, Boy, vai jogar!

E mais uma vez,o gaiato do Maluco saboreou as palavras:

- Não tem nem uma viatura pra me levar? Vou demorar uns quinze minutos até chegar ao campo!

- Vai jogar, Boy! Some daqui!

E lá foi o Marujo Maluco jogar. Pensou em sacanear o Tenente sacana, mas o futebol era sua paixão. Mesmo assim, ao sair do navio mandaram por ele uma mensagem a ser entregue na Estação Rádio. Mas tudo bem, da janela da Estação Rádio dava pra ver o jogo. Ao chegar, foi logo reconhecido pelo pessoal da Estação, que começou a brincadeira pra cima do Maluco:

- Maluco, daqui  você não sai! Hoje não vai ter presepada nem gol do Malucão! Se não pedir transferência pra cá, não joga!  Pode sentar aí e tomar um cafezinho, tem bolinho e tudo! Em seguida, ao olhar pela janela, assistem juntos ao primeiro gol da Estação Rádio: 1 x 0!

Sabendo que se tratava da mais pura “guerra”,Maluco correu para os vestiários para trocar de uniforme e seguir para o campo. E foi do vestiário que, calçando as chuteiras, ouviu a vibração da torcida. Quando chegou ao gramado o primeiro tempo havia terminado e soube que o gol que ouviu dos vestiários foi marcado pela Estação Rádio: 2 x 0!

Com o jogo em seu intervalo, nosso herói ficou sozinho no meio do campo, fazendo aquecimento. Os outros jogadores foram voltando aos poucos. Quando todos haviam retornado ao campo e estavam posicionados para iniciar o segundo tempo, o temido CMG(Capitão de Mar-e-Guerra)Baumgartem chegou a lateral do gramado, bem ao centro do campo, com seu ajudante de ordens(oficial que exerce função semelhante a um secretário, prestando serviço a um oficial de alta patente), acho que era assim que se dizia, um capitão-tenente.

Nosso temido CMG Baumgartem parecia ter saído daqueles filmes antigos da segunda guerra mundial, em que os norte-americanos vendiam a idéia de que os aliados eram santos e os nazistas eram malvados sem alma. E o Baumgartem estava do lado dos malvados, com seu uniforme impecável onde o jaleco estava coberto por condecorações, e os sapatos brilhavam tanto que dava pra usar como espelho para pentear o cabelo. Logo seu ajudante chamou o técnico do seu time, sargento Piccinini. Tudo ao redor parecia imóvel. Parecia que até as crianças haviam congelado...cinema mudo... e o sargento e técnico logo correu ao meio do campo e disse:

- Maluco, o comandante Baumgartem quer falar com você!

E em ritmo acelerado, foram juntos, o sargento-técnico e o marujo-jogador. Mal prestaram posição de sentido ao CMG Baumgartem, e o Maluco foi logo interpelado. Pareciam aquelas cenas de combate que vemos nos filmes, em que o diálogo é feito aos berros:
- Boy, por que você não veio jogar?

- Estava de serviço, senhor comandante, e não fui liberado para a partida!

A cor de Baumgartem migrava do rosa para o vermelho, as cores alternando-se em seu rosto... virando-se para seu ajudante, bradou:

- Mandaram a mensagem para o navio?

- Sim, senhor! Mandamos a mensagem nove horas da manhã, senhor!

- E por que não te liberaram, boy?

Cada vez que o Baumgarten falava com o Marujo Maluco parecia que o cabelo do Boy pegava vento e balançava.

- O Tenente Tressok, oficial de serviço, não me liberou, senhor comandante! – e a marujada queria saber em que igreja seria a missa de sétimo dia do Tressok...

- O que??? Quem esse Tressok pensa que é? – e a marujada que queria saber em que igreja seria a missa de sétimo dia, pensou melhor e resolveu rezar em casa mesmo, porque o que importava era a intenção...

- Outra coisa: não eram dois os militares convocados para o jogo? Cadê o outro? Perguntou aos atropelos o encolerizado comandante nazista. Ops, o comandante Baumgartem(estou vendo muito filme de guerra).

O sargento Piccinini abriu os braços, mas foi o marujo maluco quem respondeu:

- Somente eu fui liberado pelo Tenente Tressok, senhor comandante! – pronto! A marujada que primeiro queria saber em que igreja seria a missa de sétimo dia do Tressok e depois resolveu rezar de casa porque o que importava era a intenção, decidiu que iria deixar essas coisas para Deus, que sabia o que seria melhor a ser feito em uma situação dessas...

- Mas como??? – seguindo com sons ininteligíveis, quase guturais, Baumgartem finalmente conseguiu se fazer entender:

- Vai jogar, Boy! Vai jogar! – e virando-se para seu ajudante, mais uma vez foi ouvida a trovoada: - Se perdermos este jogo, vão rolar cabeças no navio!

Nem preciso dizer que o árbitro, que não era louco e era militar de carreira, esperou com paciência de monge o desenrolar a beira do gramado. O segundo tempo agora podia ser iniciado. Novamente o árbitro era a autoridade máxima do jogo. E dava pra ouvir os mosquitos chegando, de tão silencioso que estava. O apito soou baixinho, baixinho. Mas, assim que a partida reiniciou, a torcida acordou de seu transe e tudo voltou ao normal. E o Marujo Maluco, que ficou impressionado com a figura do Baumgartem...

Bem, o Marujo Maluco fez uma de suas melhores partidas de sua vida militar. Driblou, chutou bola na trave, no travessão, e, para quem entende de futebol, abriu uma loja de bicicletas em pleno jogo! Só não fez chover. Era mesmo fora-de-série quando o assunto era futebol. Não tinha como negar.  E fez um gol. Um golaço! Recebeu a bola no meio campo de sua defesa e foi driblando os adversários até chegar ao gol. Goleiro também. E se o Tressok e o comandante do navio lá estivessem, também seriam driblados. E podia chamar o Tenente Centurione e o marinheiro Ednaldo lá na taifa que o Maluco driblava para marcar o gol.

Mas foi somente um gol. E para o Comando do Grupamento Naval do Sul o pior aconteceu. E terminou o jogo com a vitória da grande equipe da Estação Rádio por 2 x 1.

E teve gente dizendo que o comandante Baumgartem estava com o rosto escarlate quando foi embora.
E teve gente que disse que as crianças entraram em campo para pedir autógrafo para o marujo maluco. Não para tirar foto, porque naquele tempo não havia esse negócio de selfie. E o Marujo Maluco, que era mesmo maluco, era o ídolo da criançada. Porque fazia o que dava na telha. Ou porque era mais criança que as crianças. Tinha gente que dizia isso...

E retornando aos vestiários já vazios, rindo disso tudo, o Marujo Maluco estava a trocar o uniforme, quando chegou o sargento Piccinini, já de banho tomado e com a farda militar, assustado:

- Boy, você prendeu o oficial de serviço e o comandante do navio! O Baumgartem mandou cadeia pra eles por telefone!

E o Marujo Maluco, que era nosso herói e ao mesmo tempo anti-herói, ou seja, era humano, com qualidades e defeitos como qualquer um, ficou feliz com a má sorte dos oficiais. Mas logo caiu em si e falou para o sargento:

- Sargento, o oficial de serviço e o comandante do navio estão presos porque não cumpriram uma ordem do Baumgartem, mas e quando eu voltar para o navio? Como é que eu vou ficar? Esses caras vão me encher de cadeia se eu olhar para o lado! Não vão largar do meu pé! Vou virar alvo!

E o sargento foi obrigado a concordar com o Maluco:

- É verdade, Boy! Vou lá falar com o homem! Lá foi o sargento Piccinini falar com o homem. Voltou em vinte minutos:

- Boy, o Baumgartem voltou atrás e ligou na minha frente para o navio. Tirou a cadeia, deu uma mijada por telefone no comandante e mandou repassar para o Tressok. A mijada foi tão grande que quando você chegar lá vai encontrar o navio afundado, Boy! Ah! E o homem quer falar contigo!

Brrrrr! Lá foi o Marujo Maluco falar com o homem, o temido Baumgartem. Dessa vez iria entrar na sala do Hitler. Ops, na sala do Baumgartem, Baumgartem. Olha aí os filmes da segunda guerra novamente!

Sargento Piccinini entrou na sala do homem primeiro, e o Maluco ficou esperando na ante-sala. Logo em seguida retornou e ambos entraram na sala principal do Grupamento. Nosso herói cumpriu o protocolo militar: posição de sentido, batendo firme o pé direito no chão e batendo continência. Bamgartem limpava uma pistola que não falava português, totalmente desmontada em sua enorme mesa. Estava sorrindo. Mas, quando se dirigiu ao Marujo Maluco, estava sério, com aspecto sombrio:

- Boy, qual é o seu nome?

- Meu nome é Maluco, senhor comandante! Opa, é _______, senhor comandante!

Ignorando o  deslize do Marujo atrapalhado e o sargento quase entrando em colapso ao fundo, Baumgartem continuou, desta vez em tom baixo, dentro do que poderia ser considerado baixo para aquele homem:

- Bem, _______, o negócio é o seguinte: Você vai retornar ao navio na segunda-feira e ninguém vai mexer com você. Vai servir normalmente e ninguém vai fazer nada contra você. Caso sentir-se prejudicado ou perseguido, ligue direto para mim! Entendeu?

- Sim, senhor comandante! – respondeu o Maluco, que mal respirava.

- Piccinini, mantenha-me informado!

- Sim, senhor comandante! – respondeu ao fundo o sargento.

- Dispensado!

- Sim, senhor comandante! – protocolo militar, posição de sentido, pé direito firme no chão, continência, blá, blá, blá...

E nosso herói, que também é anti-herói, cínico, fez questão de passar pelo navio antes de ir para casa.

E parecia que o Tenente Tressok conhecia muito bem o Marujo Maluco, pois estava na prancha quando este chegou a bordo. Quando o Maluco colocou o pé na prancha para subir a bordo, Tressok gritou:

- O que você quer a bordo, Boy? Não está de serviço!

- Vou pegar minha bolsa, Tenente!  - respondeu o Boy, cinicamente.

- Jogou? Jogou?

- Joguei. Perdemos de 2 x 1!

- Eu sei! Mas você jogou?

- Joguei. Perdemos de 2 x 1!

- Já falei que já sei! Mas você jogou, não jogou?

- Joguei. Perdemos de 2 x 1!

Desceu para o alojamento, pegou sua bolsa que não precisava, subiu para a Sala de Estado para cruzar a prancha e ir para casa e, ao avistar o Tenente Tressok, que se afastava, gritou:

- Tenente!

Tressok virou-se rapidamente e teve que engolir essa:

- Joguei sim. Perdemos de 2 x 1! E o submarino afundou! – referindo-se ao sonho do Tenente Tressok, que era comandar a força de submarinos da Marinha.

Tressok virou-se e entrou na coberta para onde se dirigia, sem responder.

E o sargento que estava de serviço na Sala de Estado ficou sem entender o que se passava. E o comandante do navio já havia saído quando o Marujo Maluco chegou. E o Tenente Centurione, que assistia a tudo impassível, achando graça de tudo, gritou para o Marujo Maluco, que já ganhava o cais em direção aos portões de saída do porto:

- Tchau, Boy cafiado!

E o boy cafiado, o Marujo Maluco, foi embora, rindo disso tudo, sem enxergar as pessoas que passavam por ele e pensavam: esse cara deve ser maluco, rindo sozinho pelo caminho e vez ou outra falando algo assim como:

- Perdemos de 2 x 1!

E já vão trinta anos que essa aventura do Marujo Maluco aconteceu. E a mulher do Marujo Maluco, que não é mais marujo mas continua maluco, acorda no meio da noite e encontra seu marido rindo sozinho, escrevendo em seu caderno o que ele diz serem suas memórias, e volta a dormir, pensando: Esse meu marido só pode ser maluco! E, antes de voltar a dormir, ainda ouve o marido maluco rindo sozinho e falando:

- Perdemos de 2 x 1!

Rogério Silveira

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Opine, comente, reclame, grite! Aqui: