sábado, 22 de fevereiro de 2014

QUARENTENÁRIO - O PRIMEIRO DIA DO COMEÇO DE NOSSAS VIDAS I


Essa parte da minha vida se chama “o primeiro ano do começo de nossas vidas” parodiando o filme, que tem o mesmo nome, clássico dos anos 1980 (1985, sendo mais exato). Não pela dramaticidade, mas pela importância, pelo ocorrido que mudou completamente minha vida. Possivelmente em um capítulo não será possível escrever tudo; talvez 2 ou 3, quem sabe até 4.

Começo escrevendo inspirado ou influenciado também por outro filme, que é “Em Busca da Felicidade”, tendo assistido umas 60 vezes, sem exagero, por volta de 2008. Isso porque, ao montar e ministrar o curso de Economia Solidária, o utilizei nas turmas do curso. Hoje percebo a incoerência de passar um filme que exalta o heroísmo capitalista do protagonista em um curso que busca uma alternativa para esse sistema. Os alunos, provavelmente inconscientemente, devem ter percebido a burrice do professor. Qual será a mensagem que passei? Deve ter comprometido completamente o curso, que preparei com tanto afinco, baseado na obra de Paul Singer, mas com a merda de um filme endeusando o capitalismo selvagem.

Nesta fase da minha vida remonto ao ano de 1988. Foi nesse ano que conheci a Ana Teresa, neta de uma vizinha do Branco, o Robson Lima, baixista da Mayday, como já apresentei aqui alguns posts atrás (na verdade muitos posts). Em seguida começamos a namorar. Ela morava em São Paulo e descia a serra algumas vezes por ano e então tínhamos aquele namoro quase que virtual, por telefone e vez por outra nos encontrávamos. Nessa época, auge nosso no movimento punk, íamos para São Paulo assistir shows, participar de passeatas, enfim, fazer qualquer coisa que a metrópole poderia nos proporcionar e que a ‘provinciana’ Santos dos anos 1980 não nos oferecia.

Éramos todos menores de idade, algumas vezes, para viajar, pegávamos no juizado de menores autorização com nossos pais, mas a maioria das vezes íamos na coragem e contando com a sorte, para não sermos pegos pela ‘migração’, que era o próprio juizado de menores, que prendiam os desavisados e teimosos adolescentes em uma sala na rodoviária do Jabaquara, sul de São Paulo, até os pais irem buscar. Imaginem o transtorno. E isso aconteceu com uns amigos (Quinda, Raimundo, Marcus Wander, Cleber), mas comigo nunca.

Numa dessas viagens para São Paulo, se não me engano em um 7 de setembro... pensando bem, não foi nessa data, pois as ruas estariam tomadas de milicos, mas foi em um feriado qualquer dessa época do ano, fomos a São Paulo participar de uma passeata pela paz. E saímos da praça da República em direção... bah, agora não me recordo o trajeto. Acho que até a Praça da Bandeira, sei lá.

A passeata tinha como motivo um alerta pela paz. Movido pelos gritos de sempre, seguíamos pelas ruas da cidade, importunando o trânsito e rodeado de policiais prontos a descer a porrada. No primeiro deslize e eles partiam para cima. Ainda mais em uma época recém sápida da ditadura.

O movimento era apartidário e virava uma miscelânea quando direcionava seus impropérios à exploração capitalista (“você aí parado, também é explorado”), depois voltava a carga a indignação contra as guerras, tendo como pano de fundo sempre Hiroxima e Nagasaki e o dia 6 de agosto de 1945 (“pela vida pela paz, Hiroshima nunca mais”), quando os EUA jogaram a bomba nuclear em represália ao ataque japonês a Pearl Harbor, base naval norte americana, no final do que a História designou como sendo a Segunda Grande Guerra Mundial. Essa data foi, é e sempre será importante na minha vida, o que veremos mais adiante.

Enfim, estávamos em vários amigos de Santos e no meio da passeata nos perdemos. Sobramos eu, Zé Renato e Ronaldo. Quando chegamos ao nosso destino, não encontramos os caras de Santos, para voltarmos juntos. Mesmo tendo procurado na multidão, nada. Tivemos a ‘brilhante’ idéia de retornar a Praça da República, de onde partiu a passeata.

Importante um parênteses aqui. Éramos completamente idiotas e nosso maior desejo era sermos presos e ter ficha na polícia, o que, infelizmente para a época, mas felizmente para os dias de hoje, não aconteceu, apesar das inúmeras vezes que a polícia nos parou para “dar geral”, muitas dessas vezes com uma violência desproporcional e desnecessária. Sim, porque éramos um bando de punks rasgados e sujos, mas raquíticos, que não faziam mal a uma mosca, mais por nossa ideologia, menos por nossa fraqueza física.

Ao voltarmos pelo mesmo trajeto, com a esperança de encontrar o pessoal de Santos, chegamos finalmente ao nosso destino, que era o início da passeata. Como o personagem de Guy Pearce, Leonard Selby,em Amnésia, fizemos o caminho de ida ao contrário, saindo do final e chegando no começo. Sem sucesso, paramos e sentamos em um dos bancos da praça, sempre com a esperança de que os demais tivessem o mesmo raciocínio nosso.

Aguardando, ficamos sentados. Conversa tola possivelmente, sobre como mudar o mundo, a alienação do povo, qual banda mais legal do momento, entre outros assuntos que devem ter dominado nosso papo naquele ensolarado final de tarde em São Paulo. 

A forma como estávamos dispostos era a seguinte: caro leitor, imagine esses bancos de praça, cinzento, de cimento, arredondado, pouco confortável, embora construído de forma anatômica para dar algum conforto; eu estava de costas, virado de frente para os meus amigos, de pé, com a perna direita no banco; no canto esquerdo para quem está de frente para o banco; Zé Renato sentado no meio, mas no encosto com os pés no acento do banco; Ronaldo sentado no banco, da maneira mais convencional. Mochila nas costas dos 3, cada um com a sua e suas parafernálias e bugigangas dentro.

Naquela época existia uma rixa grande entre as tribos diferentes, uma intolerância com o diferente. Acredito que hoje isso esteja amenizado, ao menos em relação ao tipo de som e ideologia de cada um; também pelas leis e pelo politicamente correto, a intolerância fica mais no campo da hipocrisia e se dissipa. Mas nos anos de 1980 não era possível escutar Heavy Metal e ser Punk; era uma heresia ser Careca e ter amigos Punks ou que escutassem outro tipo de som que não o Punk/ Ska/ Oi, estilo de música identificada como sendo dos Carecas do Subúrbio. Estes eram caras bombados, fortes, que pegavam os raquíticos punks para descarregar suas raivas e frustrações com a sociedade capitalista.

Sempre nutri um desejo não confesso de encontrar os carecas. Nunca acreditei que eles seriam violentos conosco. Felizmente os encontramos pela frente uma única vez. E eles foram violentos! E foi nesta tarde, final de passeata, nós de volta à Praça da República, em São Paulo, esperando nossos amigos para voltarmos todos para Santos, que tivemos esse triste, fatídico, violento e sangrento encontro. Pelo que minha percepção pôde sentir, 3 carecas chegaram nas minhas costas. Rolou aquele stress, aumento de taquicardia, tensão... o medo não nos petrificou, fez ficarmos alertas, mas nos mantivemos em nossas posições, para não criar um mal estar e precipitar a violência.

Ao chegarem até onde estávamos, rolou o seguinte diálogo:

Careca: “De onde vocês são?”

Nós, em uníssono, muito provavelmente tomados pela tensão do momento, de medo: “De Santos.” Tremor na voz.

Careca: “Cidade ou subúrbio?”

Um momento de hesitação entre nós. Raciocínio rápido, pressentíamos o pior. Santos é uma ilha, tudo junto e misturado. Cidade e subúrbio se misturam em uma Babilônia caiçara. Não separa bairros nobres de bairros de periferia. Não ao menos naqueles anos de 1980. Não tinha espaço para qualquer segregação espacial/ social.

Nós, após a pausa para pensarmos: “Cidade.”

Tensão. Segundos de silêncio amedrontador. O que viria pela frente? Qual a reação de nossos algozes?

Os carecas do subúrbio tinham uma rixa muito grande com os punks da city, seja lá o que for que isso significasse, era ruim para nós sermos da ‘cidade’. Os punks do subúrbio paulistano tinham algum acordo de não agressão com os carecas do subúrbio, o que não havia com os da city. Pior para nós. Pééééééimmmm, resposta errada.

Careca: “Aqui é o seguinte, CARECA!”


E partiram para cima de nós, com seus coturnos e uma agilidade não muito grande de brutamontes. Nós, magrelos, tínhamos mais agilidade. E no auge dos nossos 15, 16 anos, éramos quase linces de tão ágeis. Eu, de pé, me safei fácil da investida; Zé Renato, em uma boa posição de defesa, conseguiu desviar do chute que acertaria sua cara em cheio; mas não tão rápido a ponto de evitar que seus óculos caíssem no chão; sobrou para o Ronaldo, que, sentado, pouco pôde fazer para desviar do chute que o acertou em cheio na boca. Corremos tão rápido quanto nossos instintos permitiram. De repente percebemos que o Ronaldo não estava conosco. Voltamos para buscá-lo e encontramos no meio do caminho, um pouco mais lento que nós. Outro problema, os óculos do Zé Renato. Queríamos voltar, mas o Zé Renato, assustado, como nós dois, comentou algo para que deixássemos para trás, o que fizemos sem pestanejar ou pensar duas vezes.

Passado o susto maior, o resultado: eu safo, Zé Renato sem os óculos, com um pequeno arranhão na face e o Ronaldo com a boca cortada, sangrando muito. Lá vamos nós, naquela torre de babel, procurar um hospital. Pergunta para um, pergunta para outro e os transeuntes nos indicaram o Hospital das Clínicas. Fomos a pé, que seria mais fácil de fugir dos carecas. Táxi nenhum nos aceitaria com o Ronaldo jorrando sangue pela boca. Ônibus perigoso demais ficar parado e a espera nos tornaria alvos fáceis. Metrô nem sei se teria para lá.

Ao chegarmos ao hospital, Ronaldo, para variar, deu outra mancada. Estava sem documento. Sem lenço e sem documento. Como era uma emergência, ele entrou logo e foi direto levar pontos na boca. Ao sermos questionados o que havia ocorrido, inventamos uma história qualquer, menos contar que havíamos nos metido em encrenca com os carecas e muito menos mencionamos que éramos de Santos.

Enquanto esperávamos o Ronaldo, eu e o Zé Renato pensávamos no que fazer para sairmos de lá sem preencher qualquer cadastro ou ficha e sem passar pelo plantão policial, o que os atendentes disseram que teríamos que fazer. E essa não era a única preocupação: havia o caminho de volta para Santos, como faríamos para chegar ao Jabaquara e pegar o ônibus, sem encontrar nenhum careca?

Ronaldo foi salvo pela Constituição de 1988, que dava o direito à saúde a todos os brasileiros, diferente de anteriormente, quando era necessário ter a carteirinha do extinto Inamps (hoje SUS) e esta só tinha quem era dependente de alguém que tinha carteira de trabalho assinada ou se o próprio trabalhasse com registro.

O Ronaldo saiu. Disfarçamos um pouco, uma ida ao banheiro aqui, outra ali e encontramos uma saída clandestina. Saímos “de fininho”, corrido, como fugitivos da cadeia. Ganhamos a rua. Chegamos ao ponto de ônibus, assustados, com medo, tensos... metrô jamais, os carecas sempre transitavam pelas estações a procura de alguém para espancar. Essa era nossa idéia, eram as informações que nos chegavam. Fomos de ônibus mesmo. Chegamos à Rodoviária sem incidentes. Mas ali tínhamos mais uma barreira.

Para ‘subir’ para São Paulo conseguimos sem percalços, ninguém questionou se éramos maiores ou menores de idade, não nos solicitaram documento, não desconfiaram de nossa idade. Mas na volta, depois de todo o susto, o receio era maior; poderiam solicitar agora documentos para conferência da idade antes de entrarmos no ônibus. Conversei com os dois e combinamos de nos separarmos, para não dar na cara e se parasse apenas um, dava para enrolar e os demais estariam embarcados. Assim, sem estarmos juntos, não levantaríamos suspeitas. Fui o primeiro a embarcar. O motorista me perguntou a idade. Sem titubear disse: “18”! Pediu meu o RG e vi que teve dificuldades para calcular minha idade; deixou-me embarcar, não sem antes emitir um comentário de que muitos menores viajavam mentindo a idade, enganando as autoridades. Eu concordando: “claro, claro, o senhor tem toda razão, esses adolescentes são complicados mesmo”. Alívio, eu havia passado. Agora faltavam os dois. Logo os vi subindo e percebi que estávamos salvos e de volta para casa.

Ao chegarmos em Santos, ligamos para o Branco, preocupados com o resto da galera. O filho da puta estava em casa, banho tomado, assistindo novela. Os demais haviam voltado para Santos tranqüilos, sem nos procurar, porque acharam que tínhamos feito o mesmo, que não seríamos tolos de voltar à Praça da República. Grandessíssimos filhos da puta! O Branco informou que, por medo dos carecas, da polícia e de qualquer repressão ou violência que pudessem sofrer, os bonitos tinham dispersado e saído da passeata antes do seu final e ido embora. Sem pensar em ninguém.

Que sufoco! Que tensão, medo, cagasso que passamos e os filhos da puta todos em casa, na maior tranqüilidade, curtindo o final de feriado. Mas de certa forma, dali por diante tivemos um quê de heróis, havíamos participado de uma ‘briga’ com carecas, sentido na pele a fúria destes, experienciado a vida em sua face mais cruel; tínhamos história para contar. Éramos o que hoje chamam de “os caras”. O respeito por nós aumentou. Por um tempo fomos tratados diferentes. Nós éramos experiência viva da violência dos carecas. Tivemos orgulho dessa situação por um bom tempo.

Dias ou semanas depois, os mesmos carecas que nos espancaram em Sampa encontraram com o Fernando, um dos punks que estava conosco na passeata na rodoviária de Santos e comentaram o episódio violento. Disseram que se tivéssemos respondido que éramos do subúrbio não teriam batido em nós. Que o lance deles era com os punks da city, não com os do subúrbio.

Ali percebemos o quanto custa uma resposta errada. Lição aprendida, embora ao longo de nossas vidas tenhamos dado respostas erradas muitas outras vezes e quebrado a cara. Depois desta, sempre de maneira figurativa.

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