Éramos seis. Nunca fomos sete. O
Flamarion nunca fez parte de nossa família. Éramos seis, embora no início, bem
no principio da minha vida, fomos por algum tempo (pouco tempo, confesso) sete:
tinha a velha Linda, minha avó, na verdade bisavó, materna. Mas ela se foi
cedo, em 1976, eu tinha 4 anos, quando ela partiu de vez. O Flamarion, meu pai,
também se foi, ano passado, dia 29 de outubro. Mas como nunca fez parte da
família, apenas aparecia, esporadicamente em casa, nos anos 70, geralmente aos
finais de semana, algumas vezes levava os guris no Olímpico Monumental para uma
das sofridas pelejas da saga gremista daquela década, menos eu e o Renato,
segundo julgamento dos adultos, pequenos demais para freqüentar as
arquibancadas de um estádio de futebol; dessa maneira, em nossa essência como
família, éramos seis, como aquele livro da Maria José Dupré, que li quando
criança, de uma coleção que fez a cabeça de crianças dos anos 1980, a Série Vagalume.
Éramos seis. Minha mãe, o
Rogério, filho mais velho, o Beto (Roberto para os íntimos), o Fábio, eu e o
Renato.
As lembranças mais antigas da
minha vida, ainda em
Porto Alegre e quando a velha Linda ainda era viva; lembro de
atravessar a casa toda para chegar ao seu quarto e procurar um espaço na cama,
nos pés, pois o canto ao seu lado já tinha dono, meu irmão Rogério, era dele
aquele território. Eu chegava de mansinho e todas as manhãs era sempre a mesma
cena: lá estava eu dormindo apertado.
O quarto dela ficava nos fundos
da casa, era necessário atravessar todo o casarão, que para eu, com meus 2, 3
anos idade, parecia enorme. Tenho viva essa lembrança. Assim como tenho viva a lembrança, de um ano
qualquer da década de 1970, não sei exatamente em que ano, tarde da noite,
todos em casa assistindo ao filme O Fantasma da Ópera. Como eu, meus irmãos
Renato e Fábio éramos muito pequenos, não podíamos assistir. Mas lembro da TV
preto e branco, na sala escura, luz apagada, piscando e emitindo luz e sons
apavorantes a cada cena nova; era assustador.
Não sei porquê cargas d’água, no
final dos anos 70, mudamos para Santos. A velha Linda já havia morrido. Ela
morreu em 76, lembro do dia do seu enterro. O Rogério, meu irmão mais velho,
muito apegado a ela, foi o único que teve autorização para ir ao seu enterro.
Também porque ele ‘já tinha’ 10 anos. Deve ter sentido bem mais a sua falta do
que os demais irmãos.
Dias depois, a vi subindo a
escada, em um vestido branco esvoaçante. Alucinação? Impressão? Ou apenas a
memória me traindo? Seja o que for, prefiro acreditar que isso tenha ocorrido e
que ela tenha vindo se despedir de mim, porque não pude me despedir no seu
velório. Assim como o tio Luiz, irmão do pai, que morreu ano retrasado e no dia
da sua morte, ou melhor, no dia em que eu soube da sua morte, sonhei a noite
inteira com ele. Acho que ele veio se despedir.
Aos poucos um a um foi saindo de
casa e procurando seu rumo. Primeiro foi o Rogério, que foi para a Marinha do
Brasil, quando fez 18 anos. O famigerado programa do Serviço Militar
obrigatório. Em plena ditadura, já no seu final, respirando por aparelho, mas
sobrevivendo.
O Beto foi para São Paulo, fazer
Engenharia Industrial na FEI, em seguida ao Rogério (fez 18 um ano depois do Rogério);
além disso, trabalhava na compensação do Banco Itaú. Isso foi por volta de 1984,
1985. Época do fracassado movimento das Diretas Já, que mobilizou o Brasil inteiro
pela Democracia, que foi derrotado com a ajuda da Rede Globo. Havia um slogan
na boca da galera: “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. Em 1985 houve uma
final inusitada entre dois times pequenos no campeonato Brasileiro: Curitiba e
Bangu, vencido pelo primeiro, em pleno Maracanã, nos pênaltis; o Brasil de Tele
Santana se preparava para a Copa do Mundo, no México; Tancredo Neves era eleito
no colégio eleitoral o novo presidente do Brasil, tendo como seu vice um tal José
Sarney; a música brasileira pulsava com o chamado Rock Nacional, ainda embrião,
pronto a estourar.
O Rogério sumiu no mundo. Foi
explorar alguns cantos, conhecer lugares e vez por outra, aparecia recheado de
discos, umas parcas mudas de roupa e muita história para contar; o Beto,
morando mais perto, aparecia com mais freqüência.
Efervescente década de 1980, eu
ainda no ginásio, ou o que chamam hoje de Fundamental II, queria fazer
medicina. Aos poucos fui desejando fazer carreira militar, na Marinha, como o Rogério.
Poucos anos depois fui destituído da idéia, tanto da medicina (por falta de
empatia com a biologia), quanto da Marinha, pela teimosia do Rogério em falar
mal da mesma. Também porque não via compatibilidade entre estudar e a carreira
militar, visão esta que anos mais tarde, já na Universidade, seria desnudada
pela realidade, uma vez que descobri ser possível estudar e ter uma carreira
militar, aliás, que esta não existiria sem aquela. Um pouco de ideologia, do
que o Serviço Militar representava naquela época, final de ditadura, para todos
nós. Como na canção do Ira!, Núcleo Base: eu tentei fugir, não queria me
alistar, eu quero lutar, mas não com esta farda (sempre quando escutava essa canção
pensava: eu quero lutar com a camisa do Grêmio).
Em 1991, eu com 18 anos e o Fábio
com 20, saímos ao mesmo tempo de casa. Fui para Assis, estudar Psicologia na
Unesp, campus desta cidade, o Fábio foi para a Londrina, a pequena Londres, no
Norte de Paraná, cursar Comunicação, Jornalismo. Com isso, restaram o Renato e
a Sirlei, minha mãe. O jogo de “resta um”, iniciado em 1985 pelo Rogério,
estava se findando. Ganhávamos o mundo e muita bagagem pelos anos que viriam.
O Renato morou muitos anos ainda
com a mãe. Casou em 2004 e continuou com a mãe, cortando o cordão umbilical em
2012, 11, não sei ao certo, quando então restou a Sirlei, em um vazio, silencioso
apartamento de 2 quartos no morro da Nova Cintra, condomínio este que o Renato
mora, em bloco diferente.
E assim está configurada a família:
Rogério, em seu segundo casamento, desta feita com a Terê e o Biel, filho
desta, morando em Navegantes, Santa Catarina, mesma cidade onde mora seu filho,
Victor Gabriel; o Beto, morando sabe Deus onde, entre Santos e Diadema, onde
vivem sua (ex?) esposa e seus dois filhos, Renatinho com 15 anos e João Vitor
de 13; o Fábio e a esposa Elaine em Londrina, a algumas quadras de casa, onde
moro com a Juliana, o Victor Hugo de 20 anos (prestes a deixar Londrina por
Santa Catarina para estudar Engenharia – a história se repete, mas a força
deixa a história mal contada...), o Gui com 15 e mais algum tempo de casa; e,
finalmente, o Renato com a Luciana e a pequena Luiza, chegando aos 7 meses por
esses dias, como já dito, morando em Santos, o xodó da família. Sim, a Sirlei
teve 5 filhos homens e até a Luiza, 5 netos, todos homens. Só agora veio a tão
sonhada guria.
Estamos prestes a nos reunir no
próximo verão, em Santa Catarina, numa dessas paradisíacas praias que Deus construiu
e que o homem insiste em modificar. Nós seis. Como nos primórdios. Dez anos
depois, quando nos reunimos por uns poucos dias no casamento do Renato.
Espero que seja o primeiro de
muitos encontros, para sentar, falar merda, bagunçar, viver aquela vida vagabunda
que as férias permitem, a Sirlei, nós 5, nossas 5 esposas, os 6 netos. E preparar
o terreno para em 2 anos, 2016, quando a Sirlei se tornará octogenária. Aí sim
uma festa maior.
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