Essa parte da minha vida se chama
“o primeiro ano do começo de nossas vidas” parodiando o filme, que tem o mesmo
nome, clássico dos anos 1980 (1985, sendo mais exato). Não pela dramaticidade,
mas pela importância, pelo ocorrido que mudou completamente minha vida.
Possivelmente em um capítulo não será possível escrever tudo; talvez 2 ou 3,
quem sabe até 4.
Começo escrevendo inspirado ou
influenciado também por outro filme, que é “Em Busca da Felicidade”, tendo
assistido umas 60 vezes, sem exagero, por volta de 2008. Isso porque, ao montar
e ministrar o curso de Economia Solidária, o utilizei nas turmas do curso. Hoje
percebo a incoerência de passar um filme que exalta o heroísmo capitalista do
protagonista em um curso que busca uma alternativa para esse sistema. Os
alunos, provavelmente inconscientemente, devem ter percebido a burrice do
professor. Qual será a mensagem que passei? Deve ter comprometido completamente
o curso, que preparei com tanto afinco, baseado na obra de Paul Singer, mas com
a merda de um filme endeusando o capitalismo selvagem.
Nesta fase da minha vida remonto
ao ano de 1988. Foi nesse ano que conheci a Ana Teresa, neta de uma vizinha do
Branco, o Robson Lima, baixista da Mayday, como já apresentei aqui alguns posts
atrás (na verdade muitos posts). Em seguida começamos a namorar. Ela morava em
São Paulo e descia a serra algumas vezes por ano e então tínhamos aquele namoro
quase que virtual, por telefone e vez por outra nos encontrávamos. Nessa época,
auge nosso no movimento punk, íamos para São Paulo assistir shows, participar
de passeatas, enfim, fazer qualquer coisa que a metrópole poderia nos
proporcionar e que a ‘provinciana’ Santos dos anos 1980 não nos oferecia.
Éramos todos menores de idade,
algumas vezes, para viajar, pegávamos no juizado de menores autorização com
nossos pais, mas a maioria das vezes íamos na coragem e contando com a sorte,
para não sermos pegos pela ‘migração’, que era o próprio juizado de menores,
que prendiam os desavisados e teimosos adolescentes em uma sala na rodoviária
do Jabaquara, sul de São Paulo, até os pais irem buscar. Imaginem o transtorno.
E isso aconteceu com uns amigos (Quinda, Raimundo, Marcus Wander, Cleber), mas
comigo nunca.
Numa dessas viagens para São
Paulo, se não me engano em um 7 de setembro... pensando bem, não foi nessa
data, pois as ruas estariam tomadas de milicos, mas foi em um feriado qualquer
dessa época do ano, fomos a São Paulo participar de uma passeata pela paz. E
saímos da praça da República em direção... bah, agora não me recordo o trajeto.
Acho que até a Praça da Bandeira, sei lá.
A passeata tinha como motivo um
alerta pela paz. Movido pelos gritos de sempre, seguíamos pelas ruas da cidade,
importunando o trânsito e rodeado de policiais prontos a descer a porrada. No
primeiro deslize e eles partiam para cima. Ainda mais em uma época recém sápida
da ditadura.
O movimento era apartidário e virava
uma miscelânea quando direcionava seus impropérios à exploração capitalista (“você
aí parado, também é explorado”), depois voltava a carga a indignação contra as
guerras, tendo como pano de fundo sempre Hiroxima e Nagasaki e o dia 6 de
agosto de 1945 (“pela vida pela paz, Hiroshima nunca mais”), quando os EUA
jogaram a bomba nuclear em represália ao ataque japonês a Pearl Harbor, base
naval norte americana, no final do que a História designou como sendo a Segunda
Grande Guerra Mundial. Essa data foi, é e sempre será importante na minha vida,
o que veremos mais adiante.
Enfim, estávamos em vários amigos
de Santos e no meio da passeata nos perdemos. Sobramos eu, Zé Renato e Ronaldo.
Quando chegamos ao nosso destino, não encontramos os caras de Santos, para
voltarmos juntos. Mesmo tendo procurado na multidão, nada. Tivemos a ‘brilhante’
idéia de retornar a Praça da República, de onde partiu a passeata.
Importante um parênteses aqui.
Éramos completamente idiotas e nosso maior desejo era sermos presos e ter ficha
na polícia, o que, infelizmente para a época, mas felizmente para os dias de
hoje, não aconteceu, apesar das inúmeras vezes que a polícia nos parou para
“dar geral”, muitas dessas vezes com uma violência desproporcional e
desnecessária. Sim, porque éramos um bando de punks rasgados e sujos, mas
raquíticos, que não faziam mal a uma mosca, mais por nossa ideologia, menos por
nossa fraqueza física.
Ao voltarmos pelo mesmo trajeto,
com a esperança de encontrar o pessoal de Santos, chegamos finalmente ao nosso
destino, que era o início da passeata. Como o personagem de Guy Pearce, Leonard
Selby,em Amnésia, fizemos o caminho de ida ao contrário, saindo do final e
chegando no começo. Sem sucesso, paramos e sentamos em um dos bancos da praça,
sempre com a esperança de que os demais tivessem o mesmo raciocínio nosso.
Aguardando, ficamos sentados.
Conversa tola possivelmente, sobre como mudar o mundo, a alienação do povo,
qual banda mais legal do momento, entre outros assuntos que devem ter dominado
nosso papo naquele ensolarado final de tarde em São Paulo.
A forma como estávamos dispostos
era a seguinte: caro leitor, imagine esses bancos de praça, cinzento, de
cimento, arredondado, pouco confortável, embora construído de forma anatômica
para dar algum conforto; eu estava de costas, virado de frente para os meus
amigos, de pé, com a perna direita no banco; no canto esquerdo para quem está
de frente para o banco; Zé Renato sentado no meio, mas no encosto com os pés no
acento do banco; Ronaldo sentado no banco, da maneira mais convencional.
Mochila nas costas dos 3, cada um com a sua e suas parafernálias e bugigangas
dentro.
Naquela época existia uma rixa
grande entre as tribos diferentes, uma intolerância com o diferente. Acredito
que hoje isso esteja amenizado, ao menos em relação ao tipo de som e ideologia
de cada um; também pelas leis e pelo politicamente correto, a intolerância fica
mais no campo da hipocrisia e se dissipa. Mas nos anos de 1980 não era possível
escutar Heavy Metal e ser Punk; era uma heresia ser Careca e ter amigos Punks
ou que escutassem outro tipo de som que não o Punk/ Ska/ Oi, estilo de música
identificada como sendo dos Carecas do Subúrbio. Estes eram caras bombados,
fortes, que pegavam os raquíticos punks para descarregar suas raivas e
frustrações com a sociedade capitalista.
Sempre nutri um desejo não
confesso de encontrar os carecas. Nunca acreditei que eles seriam violentos
conosco. Felizmente os encontramos pela frente uma única vez. E eles foram
violentos! E foi nesta tarde, final de passeata, nós de volta à Praça da
República, em São Paulo, esperando nossos amigos para voltarmos todos para
Santos, que tivemos esse triste, fatídico, violento e sangrento encontro. Pelo
que minha percepção pôde sentir, 3 carecas chegaram nas minhas costas. Rolou
aquele stress, aumento de taquicardia, tensão... o medo não nos petrificou, fez
ficarmos alertas, mas nos mantivemos em nossas posições, para não criar um mal
estar e precipitar a violência.
Ao chegarem até onde estávamos,
rolou o seguinte diálogo:
Careca: “De onde vocês são?”
Nós, em uníssono, muito
provavelmente tomados pela tensão do momento, de medo: “De Santos.” Tremor na
voz.
Careca: “Cidade ou subúrbio?”
Um momento de hesitação entre
nós. Raciocínio rápido, pressentíamos o pior. Santos é uma ilha, tudo junto e
misturado. Cidade e subúrbio se misturam em uma Babilônia caiçara. Não separa
bairros nobres de bairros de periferia. Não ao menos naqueles anos de 1980. Não
tinha espaço para qualquer segregação espacial/ social.
Nós, após a pausa para pensarmos:
“Cidade.”
Tensão. Segundos de silêncio
amedrontador. O que viria pela frente? Qual a reação de nossos algozes?
Os carecas do subúrbio tinham uma
rixa muito grande com os punks da city, seja lá o que for que isso
significasse, era ruim para nós sermos da ‘cidade’. Os punks do subúrbio
paulistano tinham algum acordo de não agressão com os carecas do subúrbio, o
que não havia com os da city. Pior para nós. Pééééééimmmm, resposta errada.
Careca: “Aqui é o seguinte,
CARECA!”
E partiram para cima de nós, com
seus coturnos e uma agilidade não muito grande de brutamontes. Nós, magrelos,
tínhamos mais agilidade. E no auge dos nossos 15, 16 anos, éramos quase linces
de tão ágeis. Eu, de pé, me safei fácil da investida; Zé Renato, em uma boa
posição de defesa, conseguiu desviar do chute que acertaria sua cara em cheio;
mas não tão rápido a ponto de evitar que seus óculos caíssem no chão; sobrou
para o Ronaldo, que, sentado, pouco pôde fazer para desviar do chute que o
acertou em cheio na boca. Corremos tão rápido quanto nossos instintos
permitiram. De repente percebemos que o Ronaldo não estava conosco. Voltamos
para buscá-lo e encontramos no meio do caminho, um pouco mais lento que nós.
Outro problema, os óculos do Zé Renato. Queríamos voltar, mas o Zé Renato,
assustado, como nós dois, comentou algo para que deixássemos para trás, o que
fizemos sem pestanejar ou pensar duas vezes.
Passado o susto maior, o
resultado: eu safo, Zé Renato sem os óculos, com um pequeno arranhão na face e
o Ronaldo com a boca cortada, sangrando muito. Lá vamos nós, naquela torre de
babel, procurar um hospital. Pergunta para um, pergunta para outro e os
transeuntes nos indicaram o Hospital das Clínicas. Fomos a pé, que seria mais
fácil de fugir dos carecas. Táxi nenhum nos aceitaria com o Ronaldo jorrando
sangue pela boca. Ônibus perigoso demais ficar parado e a espera nos tornaria
alvos fáceis. Metrô nem sei se teria para lá.
Ao chegarmos ao hospital,
Ronaldo, para variar, deu outra mancada. Estava sem documento. Sem lenço e sem
documento. Como era uma emergência, ele entrou logo e foi direto levar pontos
na boca. Ao sermos questionados o que havia ocorrido, inventamos uma história
qualquer, menos contar que havíamos nos metido em encrenca com os carecas e
muito menos mencionamos que éramos de Santos.
Enquanto esperávamos o Ronaldo,
eu e o Zé Renato pensávamos no que fazer para sairmos de lá sem preencher
qualquer cadastro ou ficha e sem passar pelo plantão policial, o que os
atendentes disseram que teríamos que fazer. E essa não era a única preocupação:
havia o caminho de volta para Santos, como faríamos para chegar ao Jabaquara e
pegar o ônibus, sem encontrar nenhum careca?
Ronaldo foi salvo pela
Constituição de 1988, que dava o direito à saúde a todos os brasileiros,
diferente de anteriormente, quando era necessário ter a carteirinha do extinto
Inamps (hoje SUS) e esta só tinha quem era dependente de alguém que tinha carteira
de trabalho assinada ou se o próprio trabalhasse com registro.
O Ronaldo saiu. Disfarçamos um
pouco, uma ida ao banheiro aqui, outra ali e encontramos uma saída clandestina.
Saímos “de fininho”, corrido, como fugitivos da cadeia. Ganhamos a rua. Chegamos
ao ponto de ônibus, assustados, com medo, tensos... metrô jamais, os carecas sempre
transitavam pelas estações a procura de alguém para espancar. Essa era nossa
idéia, eram as informações que nos chegavam. Fomos de ônibus mesmo. Chegamos à
Rodoviária sem incidentes. Mas ali tínhamos mais uma barreira.
Para ‘subir’ para São Paulo
conseguimos sem percalços, ninguém questionou se éramos maiores ou menores de
idade, não nos solicitaram documento, não desconfiaram de nossa idade. Mas na
volta, depois de todo o susto, o receio era maior; poderiam solicitar agora
documentos para conferência da idade antes de entrarmos no ônibus. Conversei
com os dois e combinamos de nos separarmos, para não dar na cara e se parasse
apenas um, dava para enrolar e os demais estariam embarcados. Assim, sem
estarmos juntos, não levantaríamos suspeitas. Fui o primeiro a embarcar. O
motorista me perguntou a idade. Sem titubear disse: “18”! Pediu meu o RG e vi
que teve dificuldades para calcular minha idade; deixou-me embarcar, não sem
antes emitir um comentário de que muitos menores viajavam mentindo a idade,
enganando as autoridades. Eu concordando: “claro, claro, o senhor tem toda
razão, esses adolescentes são complicados mesmo”. Alívio, eu havia passado.
Agora faltavam os dois. Logo os vi subindo e percebi que estávamos salvos e de
volta para casa.
Ao chegarmos em Santos, ligamos
para o Branco, preocupados com o resto da galera. O filho da puta estava em
casa, banho tomado, assistindo novela. Os demais haviam voltado para Santos
tranqüilos, sem nos procurar, porque acharam que tínhamos feito o mesmo, que
não seríamos tolos de voltar à Praça da República. Grandessíssimos filhos da
puta! O Branco informou que, por medo dos carecas, da polícia e de qualquer
repressão ou violência que pudessem sofrer, os bonitos tinham dispersado e
saído da passeata antes do seu final e ido embora. Sem pensar em ninguém.
Que sufoco! Que tensão, medo,
cagasso que passamos e os filhos da puta todos em casa, na maior tranqüilidade,
curtindo o final de feriado. Mas de certa forma, dali por diante tivemos um quê
de heróis, havíamos participado de uma ‘briga’ com carecas, sentido na pele a
fúria destes, experienciado a vida em sua face mais cruel; tínhamos história
para contar. Éramos o que hoje chamam de “os caras”. O respeito por nós
aumentou. Por um tempo fomos tratados diferentes. Nós éramos experiência viva
da violência dos carecas. Tivemos orgulho dessa situação por um bom tempo.
Dias ou semanas depois, os mesmos
carecas que nos espancaram em Sampa encontraram com o Fernando, um dos punks
que estava conosco na passeata na rodoviária de Santos e comentaram o episódio violento.
Disseram que se tivéssemos respondido que éramos do subúrbio não teriam batido
em nós. Que o lance deles era com os punks da city, não com os do subúrbio.
Ali percebemos o quanto custa uma
resposta errada. Lição aprendida, embora ao longo de nossas vidas tenhamos dado
respostas erradas muitas outras vezes e quebrado a cara. Depois desta, sempre
de maneira figurativa.
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